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Carmem (03/02)
Enaile Moreira (03/02)
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Rendendo homenagens ao nosso mais belo show cósmico, a Aurora Boreal na noite sem lua em Tok, no Alaska
Foi com dor no coração que deixamos a saída para Valdez à nossa direita e seguimos viagem para Tok. Seria um “pequeno” desvio , ida e volta, de algumas centenas de quilômetros para a cidade que todos recomendaram de que não deixássemos de ir. Estrada bonita, geleiras, possibilidade de avistamento de vida selvagem e por aí vai. A cidade ganhou fama mundial depois do maior desastre ecológico da história, quando o Exxon Valdez derramou sua gigantesca carga de óleo, arruinando um meio ambiente quase virgem e paradisíaco, matando milhões de peixes, aves e mamíferos e causando a fúria de ecologistas por todo o mundo. Esses mesmos ecologistas previram que a região demoraria décadas para se recuperar, mas a Natureza surpreendeu a todos com a rápida renovação do ecossistema e da vida marinha. Ao mesmo tempo, o desastre dificultou em muito a vida dessas empresas petrolíferas, que tiveram que passar a lidar com leis muito mais rígidas em seus novos projetos de investimento. Há males que vem para bem...
Nosso novo roteiro até Haines, de onde pegamos o ferry. Agora, vamos passar pela lendária Dawson City!
Mas a previsão de tempo para os próximos dias estava muito ruim e seguir até lá para tomar mais chuva na cabeça nos pareceu mais teimosia do que inteligência. Assim, tratamos de armar um plano B que não fica muito a dever ao plano A, não. Nosso ferry sai de Haines no dia 25 e queremos chegar lá um pouco antes, para poder aproveitar também as belezas da cidade. Ao não irmos para Valdez, ganhamos uns dias extras para conhecer outros lugares e a decisão óbvia era seguir para longe da chuva. Nossa melhor chance era para o norte e para o interior do continente. E não é que, justamente lá, perdido nesse verdadeiro fim de mundo quase polar, está a cidade quase lendária de Dawson, uma vila saída dos tempos do faroeste, criada em apenas 2 anos, na época da corrida do ouro de 1898? Seria um desvio de pouco mais de 500 km na nossa rota original. Mas conheceríamos novas estradas, novas paisagens e, acima de tudo, a cidade mais interessante dessa parte do continente. Enfim, um bom negócio!
Uma colossal e fantástica geleira parece invadir o vale, no caminho entre Anchorage e Tok, no Alaska
Para chegar lá, tínhamos de ir por partes. Dawson fica no Yukon Territory, no Canadá. Está ligado à cidade de Tok, no Alaska, através da famosa rodovia “Top of The World Road”, que fica ao norte da Alaska Highway. Ao norte da Alaska Highway? Pois é, só isso já dá uma ideia de onde estávamos nos metendo. A estrada só funciona na temporada e, descobrimos hoje, que ela vai fechar amanhã, dia 21. Ou seja, acertamos na mosca!
Uma colossal e fantástica geleira parece invadir o vale, no caminho entre Anchorage e Tok, no Alaska
Pois bem, a primeira parte da nossa jornada, depois de passarmos por Anchorage, terminava na pequena Tok. Essa foi a primeira cidade que passamos no Alaska, no nosso caminho para Fairbanks e para o extremo norte. Tínhamos dado uma parada rápida na Oficina de Turismo, onde a simpática atendente nos deu várias dicas valiosas sobre o Estado. Passamos por lá justamente na véspera do escritório fechar, pelo menos até Maio de 2013. Outra vez, na mosca!
Nossa mais bela Aurora Boreal, nos céus de Tok, no Alaska
Bom, dessa vez, já experientes em Alaska, não precisávamos mais da Oficina de Turismo. Mesmo que ela ainda estivesse aberta, não teríamos pressa. Com isso, pudemos curtir bastante a estrada da bifurcação de Valdez até lá. A parte mais impressionante é quando passamos ao lado de uma titânica geleira que parece invadir um vale muito abaixo da estrada. Lugar lindo! Como muitos outros lugares do Alaska, os principais frequentadores são os caçadores. Essa atividade está muito mais entranhada na cultura local do que havíamos imaginado. Aos poucos, vamos nos acostumando com pessoas vestidas em suas roupas camufladas, veículos off-road que carregam equipamentos e as vítimas abatidas e caminhões repletos de carcaças e chifres de alces, elks, caribous e veados. Acho que quem não se acostuma nunca são os pobres cervídeos. Afinal, seu genoma nunca os preparou a se esquivar de balas disparadas a mais de 200 metros de distância por rifles com mira telescópica. Não me parece muito justo, mas... assim é por aqui.
Nossa mais bela Aurora Boreal, nos céus de Tok, no Alaska
Bom, voltando à viagem, chegamos já no escuro a Tok, arrumamos um pequeno hotel e fomos logo checar a previsão. Noite clara, sem lua e boas chances de aurora. Viva!!! Ainda não tinha falado, mas esse foi também um dos grandes motivos para voltarmos a essas bandas. Assim, começamos a checar os céus com os nossos olhos, de tempos em tempos. Um pouco depois da meia noite e, bingo! Lá estavam elas, as norhern lights, a Aurora Boreal, o aviso de que o show cósmico estava para começar!
Um verdadeiro show de luzes e cores na nossa mais linda Aurora Boreal nessa passagem pelo Alaska, em Tok
Não perdemos muito tempo! Entramos na Fiona e nos afastamos das poucas luzes de Tok e chegamos a um ponto onde só estávamos nós quatro: eu, a Ana, a Fiona e o Universo. Tinha as estrelas também, mas nem a lua convidamos!
Um verdadeiro show de luzes e cores na nossa mais linda Aurora Boreal nessa passagem pelo Alaska, em Tok
Bom, até hoje pela tarde, eu achei qu já tinha visto a Aurora. Ledo engano. Aquilo era outra coisa. A verdadeira Aurora, essa conhecemos hoje. Até então, tinha sido sempre muito lindo, especialmente para um habitante dos trópicos, completamente virgem nesse assunto. Mas confesso que as fotos ficavam mais bonitas que a realidade. Com um tempo de exposição mais longo nas fotos, o verde ficava mais forte do que era na realidade. Ficava uma falsa impressão que o céu ficava mesmo com aquelas cores fortes. Na verdade, era sempre mais tênue.
Um verdadeiro show de luzes e cores na nossa mais linda Aurora Boreal nessa passagem pelo Alaska, em Tok
Bom, isso foi até essa noite. Agora, a Natureza resolveu nos mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Dessa vez, o que se vê nas fotos não chega a metade do que vimos com os olhos. Um verdadeiro balé de cores e formas, (nada de tênue não!) sobre nossas cabeças. Uma mágica que nos fez chorar de emoção, tamanha era a nossa incredulidade em ver tudo aquilo. Pela primeira vez, vimos outras cores com clareza. Vermelho, roxo, um azul meio esbranquiçado e, claro, muito verde.
Um verdadeiro show cósmico, na Aurora Boreal na noite sem lua em Tok, no Alaska
Ficamos ali extasiados, sem fôlego, sem palavras, diante do espetáculo absolutamente indescritível se desenrolando ao nosso redor. Gente...sabe tudo aqui que sempre falaram da Aurora? Pois é... é muito melhor! Nosso desvio, o tempo ruim no sul, tudo isso já valeu a pena. E ainda temos Dawson pela frente. Com mais promessa de Aurora. Não dá para reclamar...
Rendendo homenagens ao nosso mais belo show cósmico, a Aurora Boreal na noite sem lua em Tok, no Alaska
Sanduíche de Luiza, em Curitiba, no Paraná
Fazer longas viagens altera completamente a nossa percepção do tempo ou, mais especificamente, da passagem do tempo. A ausência de rotina nos tira referências com as quais nossa mente percebe que os dias e os meses estão passando. Quando uma segunda-feira é igual a um sábado que é igual a uma quinta-feira que é igual a um feriado, dias da semana e mesmo do mês perdem o sentido prático, se tornam apenas uma palavra a mais, pronta para ser esquecida na próxima esquina.
Buscando a Luiza na escola, em Curitiba, no Paraná
Buscando a Luiza na escola, em Curitiba, no Paraná
Outro fator que nos faz parecer que o tempo está parado são as notícias que chegam do Brasil. Francamente, sempre que abrimos algum dos portais de internet com notícias do nosso país ou mesmo do mundo, nada parece ter mudado. Algum escândalo político, alguma briga de futebol, guerra na Síria, réus do Mensalão, nada parece estar mudando. Quando se acompanha essas notícias diariamente, podem parecer que estão se movendo, como uma novela. Mas quando se dá uma olhada rápida, apenas umas poucas vezes por mês, sinceramente, parece tudo igual.
Voltando da escola, na cadeirinha, rm Curitiba, no Paraná
Brincando com a Luiza, em Curitiba, no Paraná
Paradoxalmente, a intensidade de nossa viagem, a quantidade e variedade de coisas que vemos e fazemos a cada dia, nos faz parecer que o tempo está voando. Em uma vida dita “normal”, são poucos os dias espetaculares que temos a cada ano, dos quais vamos guardar boas memórias pelas próximas décadas. Pois bem, na nossa vida de viagens, se passa ao contrário: são poucos os dias “normais” ou, na verdade, o normal para nós é ter um dia espetacular. Com isso, memórias incríveis e inesquecíveis vão se acumulando, disputando o espaço limitado de nossos neurônios. Quando visitamos um incrível vulcão e achamos que aquilo vai nos marcar para sempre, na semana seguinte já estamos caminhando sobre uma geleira e as memórias do vulcão já estão apertadinhas lá embaixo, junto com aquelas do mergulho, da cachoeira e do museu. A sensação é que já se passaram alguns meses desde o tal vulcão, apesar de ter sido apenas há alguns dias.
Com a Luiza na Fiona, em Curitiba, no Paraná
Com a Dani e a Luiza em Curitiba, no Paraná
É claro que a memória não se perde, mas aquela emoção, o sentimento vívido de ter estado lá encima, isso foi, de certa forma, substituído por sentimento igualmente intenso e emocionante de se estar caminhando sobre um rio de gelo que desce da montanha. Felizmente, temos sempre muitas fotos e histórias para tentar reavivar um pouco a emoção e o sentimento de ter estado encima do vulcão, mas a percepção de que muito tempo passou, isso não muda.
Tentando ganhar a confiança da sobrinha, em Curitiba, no Paraná
Brincando com a Luiza, em Curitiba, no Paraná
Enfim, vivemos sempre nessa espécie de confusão mental sobre a passagem (ou não) do tempo. Tentando conciliar as duas percepções aparentemente opostas, a sensação é de ter vivido vários anos em apenas um ano verdadeiro, ao mesmo tempo em que esse tal ano verdadeiro não parece ter passado. Mas a realidade nua e crua é que ele passou sim. Uma olhada mais cuidadosa no espelho e uma contagem dos fios de cabelos brancos acaba rapidamente com o sonho do tempo parado. Não, ele está passando sim! A comparação das fotos do início e do fim da viagem é inclemente, hehehe Acho até que ter vivenciado tantos anos em apenas 3 anos dessa nossa viagem tão intensa teve também seus reflexos nos fios de cabelo. Aparentemente, eles também sentiram mais a passagem do tempo...
A Dani e a Luiza, em Curitiba, no Paraná
A Luiza, nossa linda sobrinha, em Curitiba, no Paraná
Agora, na nossa rápida passagem por Curitiba para recarregar as energias e fazer algumas das burocracias inadiáveis (ver post anterior) para podermos seguir viagem até o sul do continente, novamente as idiossincrasias da passagem do tempo apareceram. As mesmas ruas, as mesmas avenidas, as mesmas pessoas correndo para restaurantes para aproveitar seu intervalo de almoço nos respectivos empregos. Nada parece ter mudado, o tempo parece ter estado congelado nesses últimos quatros anos, ao mesmo tempo em que fomos e voltamos do Alaska, numa viagem aparente de 40 anos. Será que fomos mesmo? Não terá sido tudo um belo e longo sonho alimentado por imagens de lugares que queremos tanto conhecer? Será que se eu botar minhas antigas roupas sociais e seguir para o escritório que um dia trabalhei, terei mesmo alguma prova de que o tempo passou nesses últimos 4 anos?
Depois de mais de dois anos, reencontro com a mãe, a irmã e a sobrinha em Curitiba, no Paraná
Almoço com o pai, irmã e sobrinha, em Curitiba, no Paraná
A resposta para essa pergunta é um sonoro “sim”! Sim, aqui mesmo, em Curitiba, temos a prova viva de que o tempo está passando, que ele não para nunca e que, enquanto explorávamos os rincões do continente, também em Curitiba e na vida “normal” as coisas mudam. Essa prova viva tem até nome próprio: Luiza!
Sanduíche de Luiza, em Curitiba, no Paraná
Na verdade, Luiza é o nome da nossa sobrinha, filha da irmã mais nova da Ana. Quando saímos de viagem, no final de Março de 2010, a Dani já estava grávida da Luiza e, pouco mais de três meses depois, ela veio ao mundo quando estávamos em Ilhabela, no litoral de São Paulo. Corremos de volta a Curitiba, para também lhe dar as boas-vindas a este mundo, e logo retomamos nossos 1000dias, subindo em direção aos estados do nordeste e do norte do país.
Brincando com a sobrinha em Curitiba, no Paraná
Embevecido! (em Curitiba, no Paraná)
Depois, meio planejado, meio coincidência, passamos de volta em Curitiba no nosso caminho para o Paraguai e a etapa internacional da nossa viagem justamente quando a pequena Luiza fazia 1 ano de idade. Deu até para participar da primeira festa de aniversário.
Essa tinha sido nossa última vez, ao vivo, com nossa querida sobrinha. Desde então, contatos, só pelo Skype. Pela telinha do computador, fomos vendo ela crescendo, fazendo dois anos e depois, três. Ao mesmo tempo, para ela, nós viramos os tios que moravam dentro do computador. Fazia festa às vezes, mas em outras, achava meio entediante falar com aquelas pessoas de quem não se lembrava de ter estado. Para nós, ver aquela menina crescendo e ficando mais esperta a cada contato era a prova mais concreta de que o tempo estava, sim, passando e, pior, que nós estávamos perdendo coisas importantes aqui na nossa cidade.
A Luiza e o Alfred, em Curitiba, no Paraná
Agora, no nosso caminho para o sul do continente, tínhamos de passar por aqui de qualquer maneira. A história de renovar o passaporte ou fazer a cirurgia do dente eram só boas desculpas para vermos nossa sobrinha outra vez. Estava mais do que na hora dela saber que nós também existíamos fora da tela do computador!
Reencontrando amigos em Curitiba, no Paraná
Brincando com a Luiza na piscina, em casa de amigos em Curitiba, no Paraná
E assim, logo no nosso primeiro dia na cidade, já fomos buscar ela no colégio. Ela nos olhou meio desconfiada, olhos arregalados ao perceber que éramos de carne e osso. Depois, aos poucos, tratamos de ganhar sua confiança, um presentinho aqui, uma brincadeira ali. De pouco em pouco, encontros quase diários, fomos ficando mais e mais amigos. Tios de verdade!
Brincando com a Luiza na piscina, em casa de amigos em Curitiba, no Paraná
Foram duas semanas aqui em Curitiba, revendo amigos e correndo atrás de papelada, planejando o resto da viagem e curtindo estar num mesmo lugar por tanto tempo. E o mais doce de toda a estadia: ver, rever e re-rever nossa querida sobrinha, a prova inconteste que estamos mesmo envelhecendo, que o tempo está passando e que o mundo e a vida podem ser tão divertidos em Curitiba como também no resto do continente! Logo estaremos na estrada novamente, mas agora, quando nos falarmos no Skype, não seremos mais apenas os tios do computador... Melhor assim!
A Luiza, nossa linda sobrinha, em Curitiba, no Paraná
O porto de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Acordamos na manhã de ontem, dia 23, já navegando no tranquilo canal marítimo entre as ilhas ao sul da Terra do Fogo. Mais um pouco e chegávamos a Ushuaia, a cidade mais austral do mundo, ponto de referência para qualquer aventureiro que se preze. Ainda tínhamos tempo para um saudável café da manhã e as últimas arrumações de nossas malas que seriam coletadas enquanto tomássemos nosso café.
A cidade de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Pois é... era chegada a hora do fim da nossa viagem à Antártida. De volta ao continente americano, mas ainda bem longe da nossa querida e saudosa Fiona. Ele nos esperava muito ao norte, em Pilar, cidade ao norte de Buenos Aires. Infelizmente não pudemos apresentá-la ao Sea Spirit, hehehe. Ainda vamos trazê-la até aqui, mas duvido que o barco navio esteja no porto daqui a mais de um mês...
O Sea Spirit é preparado para nova viagem em poucas horas, no porto de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Quando compramos nosso pacote para a Antártida e decidimos que a Fiona ficaria em Buenos Aires, precisamos decidir como seria nosso roteiro sem o carro aqui no sul, como e quando voltaríamos para a capital argentina. A decisão foi a de voltar o mais rápido possível para ficarmos logo motorizados e aí, com calma, ir descendo o país até Ushuaia. Queremos chegar ao fim do continente com nossas quatro rodas mais queridas do mundo e não de barco, com todo o respeito ao Sea Spirit! Explorações próximas a Ushuaia, também resolvemos deixar para depois. Então, compramos nossas passagens aéreas logo para o dia seguinte, hoje, dia 24. Na verdade, poderíamos ter comprado até para o dia 23, mas ficamos com medo do navio atrasar e perdermos a passagem. Inocência nossa, claro! Faça chuva ou faça sol, independente do tamanho das ondas e do mar na Drake Passage, o Sea Spirit chega sim na data marcada. Até porque, nessa mesma tarde de ontem ela já está saindo novamente de viagem com 100 novos passageiros. Mas nós não sabíamos disso...
Desembarcando do Sea Spirit em Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
O adeus de nossos guias na expedição à Antártida no porto de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Então, chegou a hora do desembarque. Nossos queridos guias se perfilaram ao lado do navio para um último adeus. Também foi a última despedida de todos aqueles passageiros que acreditaram na data de regresso e compraram suas passagens para hoje mesmo. Seguiram diretamente para o aeroporto. Para os outros, que reservaram um dia ou mais por aqui, sempre restava a chance de mais um reencontro pelas ruas e hotéis da simpática Ushuaia. Quase todos eles já tinham seus hotéis reservados, o que não era o nosso caso nem de outros poucos gatos pingados. Assim, nossa primeira tarefa foi encontrar um lugar para ficar.
Chegamos a Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Com a Kim (África do Sul) e a Pam (Austrália) em Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Ainda no início da temporada, não foi tão difícil achar lugar para nós. A procura serviu também para já caminharmos um pouco pelas ruas da cidade. O centro é compacto e não demora muito para nos acharmos na cidade. Mais difícil mesmo é nos acostumarmos a estar novamente na civilização. Ver outras pessoas nas ruas, carros, motos, prédios, essas coisas típicas do ser humano. Por um bom tempo, ainda nos sentimos peixes fora d´água. Mas, enfim, temos de nos acostumar. Atravessar uma rua toma mais tempo, mas reaprendemos isso também.
Anúncios de viagens "baratas" à Antártida em murais de hostels em Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Nos hotéis, vários anúncios nos murais anunciam viagens baratas à Antártida. São promoções de última hora, para partida amanhã ou depois. Por 3-4 mil dólares é possível ir até lá e voltar numa viagem de 10 dias. Quarto coletivo. Não deixa de ser um bom negócio. A Ana já estava se animando, mas ela também sabe que muitas outras aventuras nos esperam...
Um magnífico céu sobre a orla de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Depois de instalados, a Ana foi passear pela cidade com a Kim e eu fiquei no hostel fazendo bom uso da internet, coisa que já não via há 3 semanas. Mais tarde, fui me juntar a elas. Era engraçado caminhar pelas ruas do centro e reconhecer, de longe, os outros passageiros do Sea Spirit que estavam na cidade, quase todos ainda com a jaqueta amarela que ganhamos da expedição. Trocávamos sorrisos ou abraços, mesmo com aqueles que mal havíamos falado antes. Uma espécie de cumplicidade nos une agora, a jaqueta amarela funcionando como elo de ligação.
Um magnífico céu sobre a orla de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
De noite, nos reunimos alguns em um dos bares da cidade. No grupo, a Rowan, aquela escocesa que viajou conosco. Embora não tenhamos conversado muito durante a viagem, sempre a achei simpática. Agora ele nos contava dos seus planos: tinha alguns dias para viajar pela Argentina e seguiria a viagem sozinha, de ônibus. Uma das poucas a não sair daqui de avião. Então, combinamos de nos encontrar em Bariloche daqui a uns dias e, quem sabe, viajarmos juntos por alguns dias naquela região. Vamos ver se dá certo...
Indo para o aeroporto e observando as montanhas nevadas ao redor de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
A baía de Ushuaia, na Terra do Fogo, sul da Argentina
Despedimo-nos da Kim, a melhor amiga da Ana e companheira fiel das baladas no Sea Spirit e voltamos para o hostel. Hoje cedinho repartimos um táxi com a australiana Pam e fomos para o aeroporto, de onde se tem uma bela vista de Ushuaia e as montanhas nevadas ao fundo. Em breve estaremos de volta, de carro, para explorar essa linda cidade e seus arredores! No saguão do aeroporto, novos encontros com passageiros do Sea Spirit e logo já estávamos voando nos céus da Argentina atravessando o país de sul a norte.
Pouco mais de 3 horas de voo e pousamos no Aeroparque, o aeroporto no centro de Buenos Aires. De lá, táxi para Belgrano, onde moram o Marcelo e a Carola, os “periodistas viajeros” que tanto nos ajudaram com a Fiona. No carro deles seguimos para Pilar, cerca de uma hora de viajem a noroeste do centro da capital portenha. Ali mora a mãe da Carola e ali estava nossa querida Fiona, devidamente estacionada no jardim do quintal deles, em meio a um chique condomínio.
Junto com o Marcelo, a Carola e sua família na casa de seus pais em Pilar, ao norte de Buenos Aires, na Argentina. Aí ficou a Fiona nas 3 semanas que viajamos à Antártida
É sempre uma delícia rever nossa companheira de viagens! Ela também parece bem feliz e o motor pegou logo na primeira tentativa. Acho que está com saudades da estrada. Tiramos fotos e contamos muitas histórias para nossas amigos argentinos, mas tínhamos logo de tomar nosso rumo. Um longo caminho nos espera e já queríamos comer um pedaço dele ainda hoje. Então, mais uma vez, um muito obrigado aos nossos amigos periodistas viajeros, vocês nos salvaram e a Fiona e nós lhe seremos eternamente gratos. Esperamos vocês de braços abertos no Brasil! E agora, de volta a estrada, vamos tratar de nos esquecer do balaço do Sea Spirit e nos reacostumar ao doce sacolejar da Fiona!
Reencontro com a Fiona na casa dos pais da Carola, em Pilar, norte de Buenos Aires. Ela e o Marcelo, os "Periodistas Viajeros" nos levaram até lá de BS
Dirigindo na Praia do Cassino que, com mais de 250 km de extensão, é a mais longa do mundo. Fica entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Desde quando descobri que a praia mais longa do mundo ficava no Brasil que ansiava conhecê-la e percorrê-la. Enquanto crescia, minha família sempre viajava para praias no Sudeste do país e era uma questão de honra, pelo menos uma vez na temporada, caminhar naquela praia de ponta a ponta. Ao menos nos lugares que frequentávamos, as praias não passavam dos 10 km de tamanho e nunca encontramos alguma que nos “vencesse”.
A Fiona pronta para enfrentar os mais de 200 km da Praia do Cassino, a mais longa do mundo, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Dirigindo na Praia do Cassino que, com mais de 250 km de extensão, é a mais longa do mundo. Fica entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Curioso sobre as maiores praias, perguntava ao meu pai qual era a maior que ele conhecia e a resposta era “Praia Grande”. No litoral de São Paulo, ela tem algumas dezenas de quilômetros de extensão, mas nunca fomos até lá, pelo menos não naquela época. Já mais velho e iniciando minhas viagens ao Nordeste, comecei a me deparar com praias bem maiores. O desafio da infância continuava e, uma vez, caminhei pela praia de Prado ao Arraial d’Ajuda, no sul da Bahia, sempre pela costa. É um percurso de quase 100 km e demorei alguns dias, acampando no caminho. Mas não é uma praia única e sim uma coleção delas. Enfim, aquela longa caminhada me fez querer descobrir qual a praia mais longa no Brasil. Em um mundo sem internet ou google, não foi fácil descobrir, mas enfim veio a resposta: a Praia do Cassino, no sul do Rio Grande do Sul. E, para minha surpresa, ela não era apenas a mais longa do Brasil, mas do mundo, com seus 250 km de extensão. Nascia então a promessa de, um dia, conhecer essa verdadeira campeã.
Trecho de areia fofa e lombadas naturais na Praia do Cassino, entre o Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Praia do Cassino, a mais longa do mundo, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
O conceito de “praia” não é muito preciso e isso sempre gera dúvidas sobre sua verdadeira extensão. Onde ela começa e onde ela acaba? No conceito mais simples, uma praia é uma faixa de areia ao longo de um corpo d’água (mar, rio ou lago) delimitada por acidentes geográficos. Assim, o que determina onde começa e acaba uma praia seria um rio ou costão de pedras ou simplesmente o fim da faixa de areia. Mas que tamanho deve ter esse rio para que seja considerado o fim da praia? Qualquer riacho serve? Sabemos intuitivamente que não, mas como definir? Por exemplo, por que Ipanema e Leblon não são uma única praia? Aquele pequeno canal já é o bastante? E a tal Praia Grande, referência da minha infância? Diversos riachos dividem a enorme praia em várias praias menores, com nomes e tudo. Mas não seria uma praia só? Não só os rios são confusos, mas uma grande rocha que nos impede o caminho também pode ser. Por exemplo, muitas vezes podemos caminhar durante a maré baixa, apenas pela faixa de areia, de uma praia à outra. Depois, com a maré cheia, temos de subir nas pedras. São duas praias ou uma só?
Nosso caminho entre o Chuí e Rio Grande, longe da estrada e através dos 250 km de areia da praia mais longa do mundo. A mesma praia muda de nome ao longo do percurso, quando mudamos de município, de Chuí para Sta Vitoria do Palmar para Rio Grande
Além dessas dúvidas causadas por acidentes geográficos de definição imprecisa, ainda há um outro tipo. Ao longo do tempo, foram sendo construídos balneários ao longo de várias praias brasileiras. Muitos deles, na mesma faixa de areia, mas separados por alguns quilômetros de distância. Cada qual batizava a praia em frente (a mesma praia!) com um nome diferente. E aí, com o tempo, viraram praias “diferentes”. Mas para a mãe natureza, sempre foram e continuarão a ser uma única praia. O litoral do Paraná e o litoral sul de São Paulo são exemplos clássicos disso. Onde havia duas ou três praias, hoje são umas trinta.
O longo caminho através da Praia do Cassino, a mais extensa do mundo, entre o Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Dirigindo na Praia do Cassino que, com mais de 250 km de extensão, é a mais longa do mundo. Fica entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Toda essa conversa para dizer que nosso “orgulho nacional”, a maior praia do mundo, aqui no extremo sul do país, também “nasceu” única, mas virou várias. Para complicar a situação, não é que há vários balneários nela. Não! De tão longa, são vários municípios! Cada um puxando a sardinha para seu lado e querendo que ela seja conhecida com o nome dado em seu município. Isso porque a praia ficou conhecida internacionalmente desde que saiu no Guinness Book como a maior praia do mundo. Estão todos disputando a fama e as benesses econômicas advindas disso. Mas uma coisa é certa e posso atestar, já que percorri toda a sua extensão: é uma única faixa de areia, portanto, é UMA praia. E tem algo próximo de 250 quilômetros! Então, não importa o nome, ou os nomes, é mesmo uma praia só e merecidamente está lá no livro dos recordes.
Encontrando tráfego na Praia do Cassino, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Quase não há pessoas, mas há muitos pássaros na praia do Cassino, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
O nome que devemos dar a essa gigante, eis aí a questão! Tradicionalmente, ela é conhecida como Praia do Cassino. Começa lá na barra do rio Chuí, na fronteira do Brasil com o Uruguai, e vai até Rio Grande, na boca da Lagoa dos Patos. O nome vem do início do século passado. O balneário da Praia do Cassino foi o primeiro do Brasil, criado em 1890. O maior e mais tradicional hotel do balneário era o Atlântico e nele funcionava uma grande sala de jogos, pelo menos até que essa atividade fosse proibida no país, na década de 40. Quase um cassino. Sua fama na região deu nome a longa praia. Acontece que, muitos anos depois e muitos quilômetros ao sul, um outro balneário apareceu na mesma praia, mas em outro município, Santa Vitoria do Palmar. Era o balneário do Hermenegildo (que nome!). A praia ganhou o mesmo nome, pelo menos na sua extensão contida nesse município. Por fim, a pequena cidade de Chuí também ganhou sua autonomia, bem recentemente. Aquele trecho da praia gigante em seu território também foi rebatizado. Os habitantes de Santa Vitoria argumentam que o maior trecho da praia está em seu município, então, se for para ter um nome só, deve ser o seu, apelidado de “Hermena”. `Ou então, que seja considerado três praias, pois mesmo assim, dividida, a Hermena vai figurar entre as maiores do mundo, embora perderá o título...
Mais um encontro com um grupo de centenas de pássaros na Praia do Cassino, ao sul de Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Mais um encontro com um grupo de centenas de pássaros na Praia do Cassino, ao sul de Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Bom, deixe que eles briguem entre si que nem a praia, nem nós dos 1000dias damos muita bola para isso. O importante mesmo é percorrer a praia, a maior do mundo e do nosso continente querido, esse que temos explorado nesses 1000 dias de jornada americana. Para quem quer conhecer todo o continente, era uma obrigação passar por aqui também, certo? Faltava decidir como! De carro ou a pé? Resposta fácil, essa...
Cruzando com uma garça na Praia do Cassino, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Passando ao largo da Estação Ecológica do Taim, na Praia do Cassino, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Ao contrário da minha longa caminhada pelas praias do sul do Bahia, onde cada curva era um cartão postal, a água do mar era quente e o vento agradável, aqui nada disso é verdade. A praia é enorme e tem sua beleza, mas é uma grande reta sem fim. Caminhar esses 250 km, além de demorar uns 10 dias, seria um teste de paciência. Alguns aventureiros o fazem, mas nós, definitivamente, não estávamos com esse pique. Ainda mais, acompanhados dos meus pais. Então, resolvido, de Fiona, uma verdadeiro camarote. Nada de vento ou de frio. A questão, então, passou a ser: dá para dirigir por toda a praia?
Localização da Estação Ecológica do Taim, entre a Lagoa Mirim e o Oceano Atlântico, ao longo da Praia do Cassino, no sul do Rio Grande do Sul
A Estação Ecológica do Taim é um grande banhado (planície alagada) entre a Lagoa Mirim e o oceano, ao norte da Lagoa da Mangueira, no Rio Grande do Sul, lar de milhares de pássaros, capivaras e outros animais (fotomontagem da Internet)
Uma rápida pesquisa pela internet e uma preciosa confirmação boca a boca com gente que vive por aqui nos deixou seguros que sim, que era possível. Ainda mais num carrão como a Fiona. O único ponto era estar ligado na maré. Quanto mais baixo o mar, mais dura e firme a areia. A maré alta nos empurra para a areia fofa, principalmente em certos trechos. Mas a não ser que estivéssemos falando de uma maré alta de lua, a Fiona conseguiria se virar bem.
Um dos faróis na Praia do Cassino, entre o Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Um belíssimo arco-íris nos acompanha na travessia da Praia do Cassino, entre Chuí e Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Então, sem mais delongas, bem pertinho da barra do Chuí, onde estivemos no final da manhã, deixamos a estrada para trás e entramos na areia. Ali estava nossa nova rodovia pelos próximos 250 quilômetros. Dia de sol e vento, mas não dentro da Fiona. Alguns minutos dirigindo e já tínhamos deixado para trás os últimos sinais de civilização do balneário da Barra do Chuí e estávamos sós, nós, a praia, o mar e o vento. Uma natureza vasta, quase infinita. Praia do Cassino ou Praia do Hermenegildo, para nós era, simplesmente, “a praia”.
Pescadores aproveitam a calma da Praia do Cassino ao sul de Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Pescadores aproveitam a calma da Praia do Cassino ao sul de Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Foram dezenas de quilômetros sem encontrar absolutamente ninguém. Aqui e ali, rastros de carros, único sinal que havia mais gente além de nós no mundo. Mundo sem gente, mas com muita vida, principalmente de pássaros. Além deles, uma manada de vacas. Pastando areia? Bebendo água do mar? Vai saber... Mas são mesmo os pássaros os senhores da praia. Pássaros pequenos e grandes. Pássaros voando sós ou em grandes grupos. Pássaros descansando e pescando. Era só a Fiona se aproximar que logo vinha o espetáculo da revoada.
Ao sul de Rio Grande, na Praia do Cassino, encontro com o navio encalhado há quase 40 anos, o Altair, no litoral do Rio Grande do Sul
Junto ao navio encalhado Altair, na Praia do Cassino, ao sul de Rio Grande, a Ixa mostra nossa posição no mapa da Fiona (litoral do Rio Grande do Sul)
Um pouco antes da metade do caminho, a grande estrela da região: a Estação Ecológica do Taim. É uma reserva de proteção de uma vasta área que fica entre a Lagoa Mirim e o Oceano Atlântico, ao norte de uma bela lagoa de água bem limpa e doce, a Lagoa Mangueira. Aqui pelo lado da praia a gente vê as placas de sinalização da reserva, mas a entrada principal está do lado da rodovia, então não pudemos entrar. Eu sei que os jipeiros da região costumam atravessar a reserva uma vez por ano, em trilhas no meio do mato e do banhado. Mas tem de saber os caminhos e fazer na época certa, o que não era o caso.
Ao sul de Rio Grande, na Praia do Cassino, encontro com o navio encalhado há quase 40 anos, o Altair, no litoral do Rio Grande do Sul
Ao sul de Rio Grande, na Praia do Cassino, encontro com o navio encalhado há quase 40 anos, o Altair, no litoral do Rio Grande do Sul
É uma área de banhado, o nome que se dá aqui no sul para as planícies alagadas. O lugar fervilha de vida animal, principalmente de pássaros. São dúzias de espécies e dezenas de milhares deles. Mas têm muito mamífero também, como capivaras, cachorros-do-mato, ratão-do-banhado e até lontras. Para quem gosta de répteis, numa área com tanta água, não poderiam faltar tartarugas, cobras e, claro, jacarés!
Explorando os escombros do Altair, barco encalhado desde 1976 na Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul
Cada vez mais próximos de Rio Grande, primeiro encontro com tráfego na Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul
Foi apenas quando passamos pela estação ecológica que mudamos de município e entramos, oficialmente, na Praia do Cassino. Tem até um farol (são dois ou três, ao longo de todo o percurso) nesse ponto, o que torna mais fácil a identificação de tão controversa “fronteira”, fim de uma praia e início da outra. Começa a aparecer um carro ou outro, quase todos de pescadores em busca de um bom ponto na praia. Não deve ser difícil encontrar... Coincidentemente, foi também nesse ponto que um gigantesco e nítido arco-íris apareceu no céu. Era para nos dar as boas vindas à maior praia do mundo?
Cada vez mais próximos de Rio Grande, cada vez mais movimento de pescadores e banhistas na Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul
Cada vez mais próximos de Rio Grande, cada vez mais movimento de pescadores e banhistas na Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul
Finalmente, já a menos de 20 quilômetros do final, chegamos a um dos principais pontos de referência dessa praia inacabável: o naufrágio do navio Altair. Desde Julho de 1976 ele está lá, apodrecendo e enferrujando sob a ação das ondas e da maresia inclemente. Foi uma ótima oportunidade para esticarmos as pernas e respirarmos ar puro. Sessão de fotos e exploração da carcaça do barco, bem no limite da água e da areia. Depois, de volta para a Fiona para os quilômetros finais.
Monumento no trecho inicial da Praia do Cassino, já bem próximos de Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Monumento no trecho inicial da Praia do Cassino, já bem próximos de Rio Grande, no Rio Grande do Sul
Pois é, quanto mais perto do balneário do Cassino, maior o movimento. Muito carro na praia. Aqui, começo a aprender com os próprios olhos algo que a Ana já conhecia e me ensinava: o conceito de “praia de gaúcho”. Nesse estado, leva-se o carro para dentro da praia. Como as faixas de areia são largas e firmes, tudo é transformado em um enorme estacionamento. As pessoas armam suas barracas e cadeiras do lado de seus veículos. A quantidade de pescadores também é enorme. Também...com o vento e o frio, o mar é muito mais para peixe do que para gente!
Ao chegar em rio Grande, fim de viagem na Praia do Cassino, a mais longa do mundo, com mais de 250 km de extensão, no Rio Grande do Sul
Enfim, chegamos ao final do trecho permitido para carros. Já se vê os gigantescos moles que marcam o fim da praia e o canal de água que liga a Lagoa dos Patos ao mar. Deixamos a areia para trás e entramos no avô de todos os balneários brasileiros. Hoje, virou um grande bairro, com mais de 20 mil habitantes. Daí para o centro da cidade são poucos quilômetros. É para lá que seguimos, depois de percorrer a praia mais extensa do mundo, um sonho antigo que, enfim, se realizou!
Chegando à cidade de Rio Grande, importante porto no litoral do Rio Grande do Sul
Salisbury Plain, na Geórgia do Sul, a 2a maior colônia de pinguins rei do mundo
Como sempre, nossa ansiedade em desembarcar era grande. Primeiro, porque já estávamos no navio há mais de dois dias direto, cruzando os cerca de 1.400 km entre Falkland e Geórgia. Segundo porque sempre é bom desembarcar para ver mais de perto as belezas dessa parte do mundo. E terceiro porque esta era a Geórgia do Sul! Todos gostamos de Falkland, principalmente pela história que carrega e todos ansiamos pela Antártida, um nome que soa quase mágico em nossos ouvidos; mas todos sabemos também que, na prática e analisando racionalmente, é a Geórgia do Sul o lugar mais bonito e impactante que vamos conhecer nessa viagem. E era justamente aqui que tínhamos acabado de chegar.
Chegando à Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Todos agitados, preparando-se para o desembarque em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de Mitch Jasechk)
Ontem de tarde, ainda em alto mar, já tínhamos feito os procedimentos de biossegurança, limpando todo o material orgânico eventualmente trazido de Falkland em nossas roupas e equipamentos. Ninguém quer misturar ou importar pequenos seres de lá para cá. Seriam potencialmente devastadores para o ecossistema local. Se for para acontecer isso, que seja na carona de algum albatroz ou pinguim, e não na nossa jaqueta ou máquina fotográfica! Enfim, já estávamos “limpos” para descer em terra firme.
Como sempre, o zodiac com os guias é o primeiro a desembarcar em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Como sempre, o zodiac com os guias é o primeiro a desembarcar em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
E que terra firme! Nosso primeiro ponto de desembarque na Geórgia do Sul se chama Salisbury Plain. É uma planície fechada entre o mar gelado e as altas montanhas congeladas atrás. O visual é grandioso. Desde os Andes que eu não via montanhas tão belas. Aqui, elas saem do nível do mar e chegam quase aos 3 mil metros de altitude, na frente dos nossos olhos. Realmente, são belíssimas, mas, ainda assim, não são a principal atração do local. Não, não são elas, são os pinguins. Isso mesmo, pinguins! Salisbury Plain é o lar da 2ª maior colônia de “king penguins” (pinguins rei) do mundo. O pinguim rei é a segunda maior espécie de pinguins, perdendo apenas para os pinguins imperador, que vivem na Antártida. Como eles, são famosos pelas suas manchas amarelas na lateral da cabeça e no alto do pescoço, no colarinho. São mesmo lindos! E muito fotogênicos.
Comitê de recepção para quem chega a Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de K Senteney)
Impressionados com tanta beleza, os passageiros já começam a fotografar assim que chegam em terra, em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Logo cedo o Sea Spirit já estava ancorado na baía em frente a Salisbury Plane. O café da manhã foi servido mais cedo, já que tínhamos um longo dia pela frente, dois desembarques previstos. Como sempre, o primeiro zodiac a seguir para terra firme é o dos guias. Eles vão checar as condições do mar e da praia em que vamos desembarcar. Lá chegando, instalam suas bandeirinhas sinalizadoras, o caminho que deveremos seguir através da praia, da planície até o local onde estão a maioria dos pinguins, da encosta que vamos subir para ter uma vista panorâmica. Enquanto eles fazem isso, a gente coloca nossas roupas de desembarque, quase todo mundo com suas jaquetas amarelas, eu ainda firme na minha azul. De novo, a gente se divide em “macaronis” e “rockhoppers”, o nome dos dois grupos que se revezam na ordem dos desembarques, para poder dar uma certa ordem ao procedimento.
Desfile de pinguins rei em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de Wayne Pur)
Passageiros do Sea Spirit se encantam com os pinguins de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Grupos divididos, de dez em dez vamos seguindo para terra firme. Lá sempre somos recepcionados pela Cheli, canelas dentro d’água e já dando as instruções básicas de como se portar em terra. Por exemplo, pinguins sempre devem ter a preferência de passagem! Se uma coluna deles estiver se aproximando, devemos parar e deixa-los passar. A praia é deles e não nossa! Outro ponto importante: cuidado com os leões-marinho, também chamados de lobos-marinho e até ursos-marinho. São traiçoeiros! Fingem que não estão ligando para a nossa presença, mas quando passamos por perto, de repente atacam, ameaçam morder e fazem barulho. Mais ou menos como cachorros que esperam alguém passar na frente do portão de casa para assustá-lo. Em geral, não mordem. Cães que latem não mordem, diz o ditado. Funciona com os leões-marinho também. De forma geral, são adolescentes e jovens adultos macho, cheios de testosterona, querendo mostrar serviço, uma espécie de auto-afirmação. Enfim, todos atentos!
A Kim fotografa pinguins em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
O Jeff fotografa as belezas naturais de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
O Brian fotografa as belezas naturais de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Mal colocamos os pés em terra e já somos recebidos pelos pinguins. Que pássaro mais interessante e elegante. As cores lhe caem muito bem. Andam quase sempre em grupo, muito ordeiros. Parecem meio desajeitados em terra, mas logo nos acostumamos com esse jeito deles. São tão interessados em nós como nós neles. Rapidamente, já estamos todos com nossas máquinas fotográficas tirando fotos de cada detalhe. Tudo ainda é novidade e a primeira vez que a gente vê um pinguim rei, a gente não esquece.
A Anna e o Greg em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Fotografando os pinguins de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Pronto para fotografar os pnguins de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Imagina então quando vemos 200 mil deles! Na verdade, a contagem é feita por casais, então são 200 mil casais! É mesmo uma visão impressionante. Estão espalhados por toda a planície, em “ondas”. Só vendo as fotos para entender. Mais perto da praia ficam apenas os adultos. Mais para o fundo, começamos a ver os filhotes também. Na verdade, pela época em que chegamos, são filhotes já crescidos, mas ainda com a penagem infantil. São marrons. Parece até uma outra espécie. Aliás, foi o que pensaram os primeiros exploradores dessa ilha. Apenas mais tarde estabeleceu-se que eram apenas os filhotes. Uma coisa é certa: ficam muito mais belos e elegantes quando envelhecem e ganham roupagem nova.
Fotografando um fur seal (leão-marinho) em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de Jeff Orlowski)
Um leão-marinho descansa em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul. Ao fundo, pinguins rei e o Sea Spirit
Não vemos apenas pinguins, mas outros pássaros também. Albatrozes, skuas, alguns gansos. Mas os pinguins são mesmo a atração principal e a enorme maioria. Esta é a cidade deles. Dos pinguins rei. Muito eventualmente, aparece um gentoo, mas eles logo descobrem que vieram parar na praia errada...
Encontrando os pinguins rei de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Interagindo com pinguins rei em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Por falar em praia, ali perto também estão os mamíferos. Elefantes e leões-marinho. Os primeiros são dorminhocos e preguiçosos. Estão quase sempre deitados me grandes grupos. Um grande macho, muito maior do que as fêmeas, seu harém a sua volta e os filhotes que as mães acabaram de ter. Ficam tentando se enterrar no solo e nas pedras da praia. Não parecem se interessar muito por nós.
Visita a Salisbury Plain, na Geórgia do Sul, a 2a maior colônia de pinguins rei do mundo
Visita a Salisbury Plain, na Geórgia do Sul, a 2a maior colônia de pinguins rei do mundo
Já os leões-marinho, ficam guardando o seu espaço, muitas vezes com o peito aprumado, posição digna, de olho em nós. São machos querendo guardar um espaço maior e, com isso, atrair fêmeas. A estação está para começar e a testosterona está a mil. Tiramos nossas fotos, distância cuidadosa.
Visita a Salisbury Plain, na Geórgia do Sul. Ao fundo, milhares de pinguins rei e o Sea Spirit ancorado na baía
Observando a grandiosidade da paisagem de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Depois, entramos planície adentro. Há cada vez mais pinguins. Até que chegamos ao pé da encosta. É onde encontramos o nosso primeiro grande grupo de filhotes, aqueles “de outra espécie”. Muitos estão perdendo suas penas. Devem estar loucos para que isso aconteça. Até lá, apesar de já terem tamanho, duvido que consigam alguma namorada...
O Damien, nosso guia de história, em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
O Jim, ornitólogo da expedição, em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de Marla Barker)
Na encosta, os guias já colocaram as bandeirinhas para nos orientar no caminho de subida em meio à grama alta. Lá está o Jim, sempre pronto a nos dar aulas de comportamento, biologia e fisionomia de pinguins. Lá está o Damien para nos lembrar como era viver nessa ilha 35 anos atrás. Lá está o Colin para nos explicar como essas montanhas apareceram por aqui e como as geleiras as estão destruindo pouco a pouco.
Passageiros do Sea Spirit caminham pela planície de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Aproximando-se de pinguins rei em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Subimos, subimos e chegamos ao patamar máximo aonde chegaram as bandeirinhas. Um pouco mais e estaríamos no gelo e na neve. Quem está lá são mais pinguins. Por incrível que pareça, subiram isso tudo também. Deve ser saudade do gelo e do inverno, quando toda aquela planície abaixo de nós estaria branquinha.
Filmando um pinguim rei em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Interagindo com pinguins rei em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Falando nisso, a vista lá de cima é estupenda! Agora sim, com uma visão mais ampla, é possível acreditar na contagem dos cientistas sobre o número de pinguins. Ondas e mais ondas até onde a vista alcança. Viajamos toda a América e nunca vimos nada parecido. É de cair o queixo!
Explorando as planícies de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Passageiros se preparam para retornar ao Sea Spirit enquanto um leão-marinho nos observa em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Não apenas os pinguins impressionam, mas a paisagem grandiosa também. A Geórgia não é tão bonita como haviam nos advertido. Na verdade, é melhor do que isso! Só estando lá, vendo com os próprios olhos, ouvindo com os próprios ouvidos e sentindo com a própria pele. É emocionante.
O nosso artista em ação na praia de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de Vladimir Seliverstov)
O nosso artista em ação na praia de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul (foto de Vladimir Seliverstov)
Muitas e muitas e muitas fotos depois, hora de voltar. Devagarinho. Parando a cada momento para tirar mais fotos. São infinitas cenas que pedem, exigem fotografia. Mas nem todos levaram máquinas. Alguns preferiram pranchetas e uma caneta. São os artistas. Um deles, o Bart, é um verdadeiro mestre. Acha um bom ponto, senta e começa a admirar. Depois de alguns minutos, começa a desenhar. Alto padrão. Mais tarde, seus desenhos que são apenas “rascunhos” (segundo ele!) vão virar esculturas. Ele é um artista consagrado em seu país e uma estátua sua pode pagar toda essa viagem. Aliás, já estão pagando...
Passageiros voltam ao Sea Spirit enquanto pinguins caminham pelas praias de Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Pinguins rei e elefantes-marinho dividem a mesma praia em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul. Ao fundo, passageiros retornam ao Sea Spirit
Enfim, continuamos nosso caminho de volta à praia. Mais fotos de golfinhos. Mais fotos de leões-marinho. Mais fotos de elefantes-marinho. Mais foto de pessoas maravilhadas com esses animais. Os zodiacs começam a voltar, cheio de turistas. Acho que deve ser fome. A gente se atrasa, quer pegar o último zodiac de volta, aproveitar cada minuto daquele lugar. A gente e o Bart, também sempre um dos últimos a voltar. Até que chega a hora. A hora do último zodiac. Na verdade, penúltimo. Porque o último, assim como o primeiro, está reservado aos guias. E assim deixamos esse lugar mágico e marcante. Para eles, os pinguins de Salisbury Plain, a temporada está só começando. A temporada de turistas. Tivemos a sorte de ser os primeiros. Mas muitos outros virão. Este post foi sobre nós, turistas. Assim como as fotos. No post seguinte, aí sim, vou falar sobre eles. Com algumas das fotos maravilhosas onde eles são as estrelas e não nós, os pinguins amarelos.
O zodiac dos guias retorna ao SEa Spirit em Salisbury Plain, na Geórgia do Sul. Primeiros a ir, últimos a voltar
Encantados com a visita a Salisbury Plain, na Geórgia do Sul
Céu maravilhoso no caminho para a missão San Francisco Xavier, região de Loreto, na Baja California - México
Loreto é uma cidadezinha bem simpática, na costa do Mar de Cortez. Já foi a mais importante cidade “das californias”, incluindo aí a americana (que também era mexicana antes), mas para a sua sorte, não se desenvolveu muito. Além de um pequeno centro histórico, suas maiores atrações estão nas suas cercanias. A praia da cidade é de pedra, mas bem perto está uma ilha paradisíaca para onde barcos levam turistas continuamente, para passar o dia. Água limpa, praia de areias claras e até leões-marinhos.
Pinturas rupestres a caminho da missão de San Francisco Xavier, região de Loreto, na Baja California - México
Como já tínhamos feito programa parecido na ilha Espíritu Santo, em La Paz, resolvemos priorizar a outra grande atração da região, a antiga missão jesuítica de San Francisco Xavier. Os jesuítas foram os primeiros europeus a chegar na Baja California com o intuito de ficar. Vieram no finalzinho do séc. XVII, com o digno e firme propósito de trazer a salvação aos indígenas. Inadvertidamente, foi exatamente ao contrário. Trouxeram morte e destruição sob a forma de doenças europeias, contra as quais os índios não tinham nenhuma defesa.
Pequeno oásis no deserto entre Loreto e a missão San Francisco Xavier, na Baja California - México
Mas, antes disso, espalharam suas missões de catequização por todo o território. Muitas estão em lugares belíssimos, igrejas de pedra e arquitetura duradoura cercadas de desertos e montanhas. Com o flagelo das doenças, as missões acabaram abandonadas por falta de fiéis e são o testemunho de uma época que se perdeu no tempo. De poucas décadas para cá, foram redescobertas para o turismo, por sua beleza encantadora e pela história que contam.
Riacho forma pequeno oásis no deserto entre Loreto e a missão San Francisco Xavier, na Baja California - México
A mais bela dessas missões é a de San Francisco Xavier, a quarenta minutos de carro de Loreto. Isso porque a estrada agora está em boa parte asfaltada. Antes, dizem, era um suplício chegar até lá. Hoje, ao contrário, uma vez ao ano o local é sede da maior festa da península. Por isso, todos os californianos tem por ela um carinho especial.
Terreno desértico a caminho da missão San Francisco Xavier, região de Loreto, na Baja California - México
Tão bonito como a própria missão, é o caminho para se chegar lá, cruzando um deserto montanhoso e cheio de desfiladeiros. Na metade do caminho, há uma gruta com pinturas rupestres de milhares de anos. As pinturas não são grande coisa, mas o oásis ao seu lado é, com certeza! Um riacho de águas verdes corre por um canyon e a pouca água é o suficiente para sustentar um verdadeiro jardim de palmeiras e outras plantas.
Mirante na estrada entre Loreto e a missão San Francisco Xavier, na Baja California - México
Passamos por aí um bom tempo, explorando o canyon e o riacho, imaginando como era por ali no tempo das pinturas. Procuramos também as cascavéis e escorpiões tão comuns por aqui (pelo menos no nosso imaginário!), mas apesar de parecer que eles estariam atrás de cada pedra que víamos, nenhum apareceu.
San Francisco Xavier, a mais bela missão da Baja California, no México (região de Loreto)
Um pouco adiante, já no alto da montanha, uma pequena igreja estrategicamente colocada num local maravilhoso, incrível vista do deserto, das montanhas avermelhadas e do Mar de Cortez, lá embaixo, ao longe. Os cenários mais belos da Baja California que já tínhamos visto até então.
A bela missão San Francisco Xavier, próxima à Loreto, na Baja California - México
Seguimos em frente, o asfalto acabou e a Fiona foi fazendo poeira para os outros poucos carros que encontrávamos na estrada. Enfim, chegamos ao pequeno Pueblo que se desenvolveu ao redor da magnífica igreja jesuítica. Aliás, mais bonita que a igreja é a paisagem ao seu redor. E mais bonito ainda é a combinação de tudo, aquela igreja de pedra em meio à paisagem montanhosa.
Visitando a missão San Francisco Xavier, próxima à Loreto, na Baja California - México
Estávamos ali tentando os melhores ângulos para fotografar aquela maravilha quando, eis que ouço português alto e claro (e bem gaúcho!) ao meu lado. Era a Sandra, conversando com a mato-grossense quase baiana Ane e com sua colega mexicana Tania. Completava o grupo outro mexicano, o Armando. Elas ficaram felicíssimas de nos encontrar por lá. Moram aqui em Loreto já há algum tempo e creio que fomos os segundos brasileiros que elas veem por essas bandas!
Encontro com as brasileiras Ane e Sandra e a mexicana Tania na missão San Francisco Xavier, próxima à Loreto, na Baja California - México
Fomos passear e fotografar mais um pouco e os reencontramos no restaurante do Pueblo, para almoçar. Aí, contamos nossas respectivas histórias, a empatia foi crescendo e a Sandra e a Tania nos convidaram para tomar um vinho na casa delas, ali do lado de Loreto. Como vamos viajar amanhã cedo, o vinho teria de ser hoje e assim foi combinado.
A belissima missão jesuíta de San Francisco Xavier, próxima à Loreto, na Baja California - México
Fomos seguindo eles no caminho de volta, com direito à novas paradas nos locais estratégicos para fotos. Depois, seguimos com eles até a casa delas, para aprender o caminho, e eu e a Ana seguimos em frente alguns quilômetros mais para conhecer a região. É a mesma estrada que passamos ontem, chegando em Loreto. Mas já estava escuro e tínhamos perdido a chance de ver e fotografar essa região belíssima. Então, voltamos hoje, com mais calma e mais luz, máquina em punho. O Mar de Cortez forma baías e praias num litoral recortado e muito bonito. A tal ilha paradisíaca está bem em frente, com suas praias de areia, porque as praias do lado de cá são todas de pedra mesmo.
Montanhas desérticas e o Mar de Cortez ao fundo, região de Loreto, na Baja California - México
Mirante próximo à Loreto, na estrada para a missão San Francisco Xavier, na Baja California - México
Já escuro retornamos à casa da Sandra e da Tania, onde fomos recebidos com um belo vinho. A conversa foi se estendendo, assim como as garrafas de vinho. Tudo isso no friozinho do jardim delas, ao lado de uma lareira externa e tendo um céu extremamente estrelado como teto. Uma delícia! A companhia, o ambiente, a conversa e o vinho!
Costa acidentada do Mar de Cortez, próximo à Loreto, na Baja California - México
A empolgação foi tanta que só chegamos ao nosso hotel depois da uma da manhã. Mas valeu muito a pena! Afinal, não é todo dia que começamos cruzando um deserto com pinturas rupestres e oásis, passamos por uma missão jesuítica centenária e cinematográfica, encontramos conterrâneos num lugar perdido do mundo e terminamos tomando vinho apreciando o inesquecível céu do deserto!. Viva a Baja California!
Praia próxima à Loreto, na Baja California - México
Admirando a grandiosidade da Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Sem muita pressa, afinal tínhamos um dia inteiro pela frente, acordamos, tomamos o café da manhã e empacotamos a Fiona. A noite de hoje não seria mais aqui, em San Ignacio, mas no alto da Sierra de San Francisco, em pleno deserto Vizcaino, longe das luzes da cidade e embaixo do mais estrelado dos céus. Não seria uma viagem longa: 40 km pela transpeninsular (que acabará por nos levar até Tijuana) e um desvio com mais 30 km de asfalto e outros 10 de terra, em estado precário.
Encontro com americanos em San Ignacio, na Baja California - México
Primeiro, precisamos voltar à sede da Inah para comprarmos nossos ingressos à Sierra e às cuevas que lá estão, com suas pinturas rupestres de milhares de anos. Depois, já estando na praça central de San Ignacio perto do meio-dia, uma ótima oportunidade para o almoço. Aí conhecemos um grupo de americanos que voltava exatamente de lá, da Sierra de San Ignacio e do hotel rústico onde pretendíamos ficar. Os mesmos americanos a quem nosso guia de ontem havia se referido, os “doutores” que estavam fazendo serviço voluntário na região.
Vista da imensa planície desértica, subindo a Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Pois é, os “doutores” são dentistas de uma ONG americana que, uma vez ao ano, vem à esta região para trabalhar por um tempo, fazer uma revisão geral das bocas dos habitantes das serras de Sam Francisco e Santa Marta. Acabavam de terminar o trabalho na primeira e seguiam para a segunda, onde havíamos estado ontem. Um deles não era dentista não, apenas casado com uma. Mas vem sempre junto, é fotógrafo documental e tem um livro joia sobre a vida dos “califórnios”. Muito simpático, nos presenteou com um exemplar!
Vista da imensa planície desértica, subindo a Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Admirando a grandiosidade da Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
E nós, bem alimentados, seguimos viagem, atravessando a enorme planície desértica do Vizcaino. Não demorou muito e já tínhamos pego o desvio, agora seguindo diretamente para a Sierra de San Francisco, que ía crescendo no nosso horizonte. Esta estrada está sendo asfaltada e o trecho que sobe a serra, um pesadelo até há poucos anos, já está pronto. Lá de cima, uma vista absolutamente grandiosa da infinita planície abaixo de nós. Que mundo enorme! As luzes de tarde ainda faziam tudo ficar mais bonito!
Fiona no pueblo da Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Não só a planície atrás de nós, mas também s canyons à frente. Nesse trecho, a estrada tem de serpentear entre as encostas íngremes, contornando vales e precipícios profundos. É o trecho que ainda é de terra e precário. Ao mesmo tempo, é o que ainda protege esse região maravilhosa e isolada do acesso de centenas de turistas.
Nosso rústico hotel na Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Enfim, chegamos ao nosso hostal, a primeira construção do pequeno e humilde povoado de San Francisco. Marcamos nosso passeio para amanhã, à primeira hora, e vamos passear na pequena vila. Um lugarejo perdido no tempo e no espaço, localizado no meio de uma natureza belíssima, a mais de 1.200 metros de altitude. São poucas as famílias que aí vivem, uma orgulhosa de seu belo jardim florido, outra da igreja nova da cidade, outra preocupada pela dificuldade de trabalho na região, todas em dúvida sobre os benefícios e mudanças que trará a nova estrada, quando estiver pronta. É assim no Brasil, no México e em todo mundo. Uma estrada traz o progresso, com suas facilidades e problemas.
Jardim de flores no pueblo da Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Ao lado do povoado está a trilha que desce um profundo canyon onde estão várias grutas com pinturas rupestres. Para se conhecer o lugar, é um passeio de três dias e duas noites ao relento, em barracas. Obrigatoriamente com guia e mulas para carregar a bagagem e também os próprios turistas morro abaixo e, principalmente, morro acima, na volta. O preço da “expedição” acaba saindo caro, mas que fez diz que vale muito a pena. As pinturas e o “mundo” lá embaixo são inesquecíveis, dizem. Para nós, foi uma difícil decisão. Apertados mais pelo tempo que pelo dinheiro, acabamos optando por apenas vir ate aqui passar a noite e, amanhã fazer uma visita à uma gruta aqui no alto mesmo. Decidir foi difícil, mas mais difícil ainda é não se arrepender...
Cores fortes na igreja nova do pueblo da Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Voltamos para nosso hostal e jantamos um verdadeiro banquete preparado pela simpática Jadira: além dos tradicionais petiscos mexicanos, uma abobrinha com queijo de cabra derretido. Hmmmm! O friozinho lá fora e o refúgio de madeira e pedra em que estávamos fazia tudo ficar mais gostoso ainda.
Esperando o jantar no refeitório do nosso hostal na Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
Por fim, já dez da noite, todos dormindo, luzes apagadas, eu e a Ana, enrolados em nossos cobertores, ainda fomos passear um pouco pelo terreno, completamente extasiados com o céu acima de nós. Noite de lua nova, não havia concorrência para as estrelas (e muito menos sujeira no ar!). Absolutamente formidável, nossa última noite na Baja California Sur. Amanhã, depois da nossa visita da Cueva del Ratón, começamos a longa viagem à Tijuana.
A lua nova, Júpiter e Vênus na noite sobre a Sierra de San Francisco, no deserto Vizcaino, na Baja California - México
A imponente estátua em honra ao General Artigas, o maior heroi nacional, na Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Chegamos à última capital federal no circuito dos 1000dias por toda a América. Completamos nossa lista de países com o Uruguai e agora completamos a lista de capitais com Montevideo. Quer dizer, na verdade a lista de capitais não ficou assim, tão completa, como a de países. Agora que estamos na capital uruguaia, ficaram faltando a capital venezuelana, Caracas, e a de Turks e Caicos, Cockburn Town, para fecharmos todas as capitais do continente. Em Caracas estivemos, eu e a Ana, dois anos antes de começarmos os 1000dias. Por isso, quando tivemos de escolher, por questões de tempo, entre passar pela capital venezuelana ou conhecermos o sul do país, não titubeamos. As memórias de Caracas ainda estavam frescas na cabeça e até fiz um post de lá (veja aqui). Já a pequena capital de Turks e Caicos, que nem é um país de verdade, mas um território britânico no Caribe, essa deixamos para trás mesmo, preferindo visitar ilhas mais significativas do arquipélago. Faltava, então, a gloriosa Montevideo. Agora não mais!
Caminhando nas ruas do Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Pouca gente se dá conta, mas Montevideo, no Uruguai, é a capital mais austral das Américas, superando Santiago e Buenos Aires
Pouca gente se dá conta, mas Montevideo é a capital mais austral das Américas. Nossa intuição seria apostar nas capitais do Chile ou Argentina, talvez porque é nesses países que estão cidades como Ushuaia e Punta Arenas, ou regiões como a Patagônia e Terra do Fogo. Mas as suas capitais, Santiago e Buenos Aires, estão sim mais ao norte do que a capital uruguaia. Parafraseando aquele ditado famoso, “viajando e aprendendo!”.
O grande portal da Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Com os pais, aos pés da estátua de Artigas, na Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Outra coisa que aprendi chegando aqui foi que Montevideo também foi fundada por portugueses. Achei que essa “honra” só cabia à Colonia del Sacramento. Mas não. Em Novembro de 1723 os portugueses de Colonia resolveram ampliar seus domínios às margens do Rio da Prata e aqui fundaram um forte. Os espanhóis, que já tinham de aguentar a incômoda presença lusitana em Colonia, resolveram que uma cidade já era demais e não quiseram dar nenhuma chance para que o novo povoado se desenvolvesse. Dois meses depois da construção do forte, uma expedição vinda de Buenos Aires tomou a instalação militar e, eles mesmos, começaram a povoar a nova cidade. Rapidamente Montevideo ganhou importância e ainda nesse século já rivalizava com a própria Buenos Aires como principal cidade espanhola na bacia do Prata. Por um século, desde a sua criação, ela ocupava a península que hoje é conhecida como Ciudad Vieja. Foi apenas depois da rápida ocupação inglesa de 1807 e da ocupação luso-brasileira de 1816-25 que a cidade passou a se expandir além dos antigos muros.
O grande portal da Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
As principais atrações turísticas de Montevideo, capital do Uruguai, estão no Centro Velho. Nós ficamos hospedados na vizinhança mais interessante, Pocitos. Em Carrasco, área de classe média alta, há muitos hotéis e uma grande praia
Hoje a cidade cresceu bastante. Das poucas famílias de 1730 para 60 mil pessoas em 1860 para 1,4 milhão nos dias de hoje. Se consideramos a região metropolitana, são 2 milhões de pessoas em um país com 3,3 milhões de habitantes. Relativamente, é como se houvesse uma cidade no Brasil com 120 milhões de pessoas! Mas, apesar de ter crescido tanto, é ainda na Ciudad Vieja, onde nasceu, que estão os principais atrativos turísticos da cidade. E foi para lá que nos encaminhamos hoje para nossas explorações, eu, a Ana e meus pais, que nos acompanham aqui no Uruguai. Nós estamos hospedados na região de Pocitos, a mais gostosa de Montevideo, por onde passeamos ontem, quando meus pais chegaram, e onde também ficaremos amanhã. No próximo post falo de lá, um bairro que tanto nos lembra o Rio de Janeiro de antigamente, no melhor dos sentidos. Mas hoje, queríamos história, e o lugar para isso é mesmo a Ciudad Vieja.
A imponente estátua em honra ao General Artigas, o maior heroi nacional, na Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
A imponente estátua em honra ao General Artigas, o maior heroi nacional, na Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Fomos com a Fiona até as proximidades da Plaza Independencia, encontramos um estacionamento e partimos para nosso passeio a pé, sem dúvida nenhuma a melhor maneira de se conhecer essa parte da cidade. O passeio começou na própria praça, a mais icônica da capital e onde está uma pomposa estátua do herói maior da nação, o General Artigas. Estátua típica de heróis da independência em qualquer país, sobre um cavalo e em trajes militares. Sob a estátua, o mausoléu em honra ao libertador, com dados e relíquias sobre a sua vida.
Visita ao mausoleu de Artigas, na Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Visita ao mausoleu de Artigas, na Plaza Independencia, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Artigas teve uma infância abastada em fazendas da família, mas acabou por se tornar um fora-da-lei que agia com roubo de gado e tendo sua cabeça a prêmio. Mas a guerra entre Espanha e Inglaterra, no contexto das guerras napoleônicas na Europa, possibilitou que ele se incorporasse ao exército e tivesse atuação destacada, tanto para desalojar os britânicos de Buenos Aires como de Montevideo. Poucos anos mais tarde, foi um dos principais líderes na guerra pela independência dos domínios espanhóis na região do Rio da Prata. O problema é que aqueles que lutavam pela independência também estavam divididos entre si, um grupo defendendo um governo forte e central, em Buenos Aires, e outro, no qual se destacava Artigas, que defendia ideias federalistas.
Nosso circuito caminhando pelo Centro Velho de Montevideo, no Uruguai. Fomos às principais atrações, como a Plaza Independencia, o Teatro Solis, a Catedral, a Plaza Zabala e, claro, o Mercado del Puerto
O Teatro Solis, o mais tradicional do país, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Um pomposo lustre ilumina o saguão de entrada do Teatro Solis, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
A facção realista, que lutava por manter os laços com a Espanha e tinham Montevideo como capital, foram vencidos. Artigas era o mais importante líder de uma união de províncias, incluindo aquelas que hoje formam o Uruguai e outras, dentro do território argentino. Preocupados com seu crescente poder, os unitaristas, defensores de um governo central forte, acabaram por fazer uma aliança tácita com os portugueses que ainda controlavam o Brasil. Estes temiam as ideias republicanas de Artigas e com a complacência de Buenos Aires, conquistaram o Uruguai. O grande líder fugiu para o Paraguai e aí viveu exilado pelo resto da vida, nunca mais pisando os pés no Uruguai que havia liberado da Espanha. Rivais e aliados, temendo a aura de liderança de Artigas, se combinaram para que ele nunca mais recuperasse sua influência enquanto estivesse vivo. Nem mesmo na guerra de independência do Uruguai contra o Brasil, dez anos mais tarde, ele seria chamado a participar. Apenas em meados do séc. XIX, pouco tempo após morrer com mais de 80 anos de idade, seu nome foi reabilitado na terra natal e seus restos transladados para o Uruguai. Hoje ele repousa sereno em seu panteão, na Plaza Independencia e, sem nenhuma dúvida, é considerado o grande herói da história do país.
Interior da Catedral Metropolitana, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Visitando a Catedral Metropolitana, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Detalhe do piso da Catedral Metropolitana, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Após essa aula de história, retomamos nosso passeio pela Ciudad Vieja. A próxima parada foi no Teatro Solis, o mais tradicional de Montevideo. O pomposo edifício remonta da metade do séc. XIX, uma época em que a economia local fervilhava com as exportações de carne. Grandes prédios neoclássicos se espalhavam pela cidade e o Solis é um dos mais renomados exemplos. Recentemente, milhões foram investidos para devolver-lhe a antiga glória. Nós só o vimos pelo lado de fora e seu saguão de entrada, mas assistir a algum espetáculo por lá será sempre um bom motivo para voltar a Montevideo.
Visita à tradicional livraria no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Cruzando a movimentada Plaza Zabala, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Continuamos a caminhar e a próxima parada foi em uma livraria tradicional da cidade. Sempre gostamos de visitar livrarias nos países que visitamos, uma boa maneira de perceber a quantas anda a cultura no país. A literatura em espanhol, tanto de obras próprias como as traduzidas de outras línguas como o inglês e francês, é infinitamente mais vasta que a literatura em português. Percebe-se logo isso visitando as livrarias de Buenos Aires ou esta, aqui de Montevideo. Aproveitei para comprar dois livros de história, que tanto gosto, enquanto meu pai comprou um de fotos e textos relatando a visão uruguaia da Copa de 50, daquele fatídico 2 x 1, conhecido como “Maracanazo”. Meu pai esteve presente naquele jogo, então, para ele, é ainda mais interessante (e penoso?) ver a alegria dos jornais uruguaios da época.
Produtos "made in Brasil" a venda no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
quitanda no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Cães aguardam ansiosos por seu dono, em quitanda no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
A fome começava a apertar e nós também apertamos o passo. Passamos rapidamente pela feira que ocupa sempre a simpática Plaza Zabala e nos dirigimos à atração preferida dos brasileiros que visitam a capital uruguaia: o Mercado del Puerto. A cidade está cheia de gremistas que vieram para um jogo da Libertadores e a maioria deles estava no famoso mercado. Aliás, já faz tempo que ele deixou de ser um mercado de verdade e hoje é ocupado apenas por restaurantes.
Visita ao Mercado del Puerto, uma das principais atrações do Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Visita ao Mercado del Puerto, uma das principais atrações do Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Os verdureiros desalojados hoje ocupam as cercanias do prédio histórico. Aí encontramos até mesmo bananas vindas diretamente do Brasil. Mas não eram bananas que procurávamos, mas uma refeição de verdade. Nós e todos os gremistas na cidade. Com o Mercado del Puerto ali em frente, isso não era um problema!
Interior do famoso e imperdível Mercado del Puerto, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Interior do famoso e imperdível Mercado del Puerto, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
O famoso relógio do Mercado del Puerto, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
O prédio tem quase 150 anos e é o primeiro no continente construído sobre uma estrutura de ferro, uma técnica que ainda engatinhava, mesmo na Europa. A Torre Eiffel, por exemplo, só seria construída 20 anos mais tarde, em 1889. Assim que ficou pronto, virou ponto de encontro na capital e por aqui passeavam juntos gente como Carlos Gardel e Enrico Caruso, em busca de um bom café. Hoje, como disse, todas as vendas se foram e o espaço é só dos restaurantes e das centenas de turistas que vem se refestelar com um legítimo e suculento “asado uruguayo”. Foi o que fizemos, programa obrigatório para quem não é vegetariano e vem conhecer a capital do país. Uma delícia! Difícil é só escolher entre a cerveja Patricia e o vinho Tannat, porque as carnes, na dúvida, que venham todas!
Abundância e variedade de carnes nos restaurantes do Mercado del Puerto, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Abundância e variedade de carnes nos restaurantes do Mercado del Puerto, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Almoçando em restaurante do Mercado del Puerto, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Depois do ponto alto e mais nutritivo do dia, começamos a caminhada de volta à Fiona. Voltamos pelas ruas peatonais (para pedestres), aproveitando para admirar a arquitetura dos antigos prédios neoclássicos e também para observar a arte nas ruas, desde murais pintados nas paredes até os artistas se apresentando nas ruas. Dia de semana normal por aqui, também é interessante ver o ritmo normal das pessoas, gente saindo do trabalho na hora do almoço para comer na esquina ou, já perto do final da tarde, alguns bares começarem a se encher para o happy-hour. É aí que nos sentimos menos turistas e um pouco mais “uruguaios”, sensação que perseguimos em todos os países e cidades que visitamos.
Arte nas ruas do Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Música exótica nas ruas do Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Só despertávamos desse “sonho uruguaio” quando cruzávamos com alguma placa celebrando uma vitória militar contra os brasileiros. Por aqui, precisamos nos acostumar com a ideia que nós somos (ou fomos) imperialistas e opressores, ou seja, os bandidos da história. Quando o Brasil se tornou independente de Portugal, nós “herdamos” a Província Cisplatina que os portugueses haviam conquistado de Artigas anos antes. A paz durou pouco e logo Dom Pedro I estava enfrentando uma rebelião aqui no sul, mais uma luta de independência do Uruguai. Foram três anos de batalhas até que as forças brasileiras aceitassem a derrota, em 1828. A Argentina, que ajudou os uruguaios em sua guerra de libertação, sonhava com a anexação, mas aí também, já seria demais. Sob os auspícios da Inglaterra, Brasil e Argentina reconheceram a independência do novo país.
Prédios neoclássicos nas ruas do Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Homenagem à mais famosa batalha na luta de independência do Uruguai contra os imperialistas brasileiros, no Centro Velho de Montevideo, no Uruguai
Mas o nosso imperialismo não terminou por aí. Nem o dos argentinos. Pelas próximas quatro décadas, foram sucessivas intervenções desses dois países na política local, hora apenas por ameaças, hora com ações militares efetivas. Blancos e Colorados, as duas facções políticas locais que disputavam o poder, não hesitavam em pedir ajuda externa contra seus rivais. E Brasil e Argentina brigavam dentro do país para manter suas respectivas “esferas de poder”. Foi apenas com o término da Guerra do Paraguai que os uruguaios ganharam um pouco de sossego e alívio externo.
O belo parque Rodó, em Montevideo, capital do Uruguai
Pedalinhos em lago do Parque Rodó, grande área verde na área entre o centro e Pocitos, em Montevideo, capital do Uruguai
Enfim, nós, os imperialistas de outrora, chegamos de volta à Fiona. Antes de voltarmos à nossa querida Pocitos, ainda deu tempo de dar uma parada no parque Rodó, um dos mais belos da capital. Depois da selva urbana da Ciudad Vieja, passear por seus jardins e bosques foi um merecido descanso mental. Aa lado do lago por onde passeavam pedalinhos, aproveitamos o ar puro e o silêncio, buscando digerir todas as informações de um dia intenso. A noite se aproximava e mais um belo jantar em algum dos muitos restaurantes de nossa vizinhança preferida nos aguardava. Se no almoço havia sido patrícia, agora seria tannat!
Pedalinhos em lago do Parque Rodó, grande área verde na área entre o centro e Pocitos, em Montevideo, capital do Uruguai
No cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Devidamente instalados no topo do Cerro Piltriquitrón, a 2.260 metros de altura, tínhamos todo o tempo do mundo para admirar a paisagem deslumbrante que nos cercava, uma visão completa de 360 graus. O céu azul, o calor do sol e o lanche em nossas mãos faziam essa tarefa ainda mais prazerosa, frio e fome já não sendo mais fatores a considerar. Naquele momento, estávamos sós nesse belo mundo, como se fôssemos dois viajantes recém chegados a uma Terra sem pessoas. O casal que também caminhava para o cume, talvez uma hora atrás de nós, estava escondido por uma encosta íngreme, o seu último desafio para também chegar ao cume.
O Cerro Tronador, o mais alto da região, visto do cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
O vulcão Osorno, no lado chileno, visto do cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Lá embaixo, dois quilômetros sob nossos pés, perdida no meio do vale, a pequena El Bolsón. Dali saímos no início da manhã e a pequena mancha urbana era o único lembrete que a tal Terra que visitávamos não era assim, “sem pessoas”. Mas não era para o fundo do vale que olhávamos agora, mas para as montanhas muito mais além. O Piltriquitrón reina absoluto na região ao seu redor, todas as montanhas próximas abaixo de seu cume. Mas a essa altitude, podemos enxergar muito mais longe. E lá no horizonte, bem afastadas, duas montanhas ainda mais colossais nos olhavam de cima, impassíveis. Para o norte, a 100 quilômetros de distância, mas perfeitamente visível com esse céu limpo, o Cerro Tronador. Mais de um quilômetro acima de que nós, ele sim é o rei dessa parte da Argentina, a mais famosa montanha de Bariloche. Na direção noroeste, ainda mais longe e do outro lado dos Andes, o magnífico vulcão Osorno, um dos mais conhecidos do Chile. Com quase 2.700 metros de altura e com aquele belo e típico formato cônico dos vulcões, ele é visível de todas as direções, seja aqui da Argentina, seja de pleno Oceano Pacífico. Ainda vamos passar por lá, no nosso caminho de volta para o norte, em pouco mais de um mês.
Por mais que se suba, sempre há alguém mais alto do que nós! (no cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina)
Paraglider sobrevoa linda paisagem patagôniaca no alto do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Não só esses gigantes nos chamaram a atenção com suas distintas formas contra o céu azul. Algo menor e muito mais próximo também era um ímã para nossos olhos. Movia-se no céu azul, mas não era um pássaro. Não, na verdade era outro lembrete da presença humana por aqui. Silenciosos, tampouco eram aviões! Nada disso! Eram afortunados praticantes de paraglider! Como nós, resolveram aproveitar as condições meteorológicas favoráveis para um “passeio” pelas montanhas. No caso deles, bem acima delas! Não sei de onde saltaram, mas sei que correntes de ar e térmicas favoráveis os levaram lá para cima e eles podiam ver o Piltriquitrón e toda a paisagem próxima de um ângulo bem favorável. Tranquilamente, deslizavam pelos céus, nos enchendo de inveja e também de possibilidades de fotos fantásticas. Afinal, não é todo dia que se pode fotografar essas “aves humanas” contra um background tão espetacular, montanhas nevadas cercando um vale encantado preenchido por florestas viçosas e um enorme lago azul. Eu e a Ana ficamos ali, hipnotizados por aquele momento mágico, quase que sem respirar para não atrapalhar o voo daquelas pessoas. Eles iam e voltavam, para um lado e para o outro, para cima e para baixo e eu só posso imaginar o que se passava em suas mentes com aquele verdadeiro cinema em 3D sob seus olhos e pés. Existirá algum lugar mais belo nesse planeta para se fazer um voo desses?
Aproveitando o dia lindo, diversos paragliders voando na região do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
No cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Aos poucos eles foram baixando, um verdadeiro enxame de asas coloridas. Agora já estavam lá embaixo e isso nos lembrou que também nós precisávamos descer. Quase no mesmo momento, finalmente chegou aquele casal ao cume. Depois de tanto tempo, foi estranho ouvir outras vozes humanas em nosso pequeno e infinito universo particular. Chegaram na hora certa! Chance de tirarmos fotos mútuas, casais posando solos no topo da montanha. Uma breve e agradável conversa (encontros em lugares assim são sempre interessantes!) e era hora de descer!
Atravessando trecho de neve na volta do cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Atravessando trecho de neve na volta do cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Para baixo, diz a lenda, todo santo ajuda. Ainda mais em um lugar assim, onde tínhamos agora toda a paisagem a nossa frente (quando subíamos, ela estava nas nossas costas!). Já não mais parávamos para respirar ou recuperar o fôlego, mas simplesmente para admirar a paisagem cinematográfica à nossa frente. A única preocupação foi atravessar aquela passagem mais difícil, mãos ajudando os pés. Depois, foi só diversão. A maior delas, talvez, atravessar os campos de neve. Aproveitando o calor do sol, era estranho e engraçado caminhar sobre a neve vestindo roupas quase tropicais!
Mangueira de coleta de água em riacho na região do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Voltando do cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
A neve ficou para trás e chegamos novamente ao trecho com trilha bem demarcada e ao riacho que abastece o refúgio com água pura e gelada. Cruzar o longo trecho de planalto ainda foi mais agradável do que na subida, todo o nosso pensamento concentrado apenas em desfrutar aquele momento e não mais preocupado em achar o caminho até o cume da montanha. Não demorou muito e já víamos o refúgio lá embaixo, conforto e cerveja nos esperando, a cereja do bolo do grande dia que vínhamos tendo.
Interior do refúgio do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Mensagens budistas decoram o refúgio do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
E assim foi. Chegamos e entramos no refúgio para logo ficarmos amigos da guarda-parque que está tomando conta dele nessa temporada. Outra moça, assim como havia sido no refúgio San Martín, na caminhada que fizemos em Bariloche. Essas argentinas são mesmo “porretas” e isso só me faz admirá-las ainda mais. Passam semanas aqui nesses rincões isolados, longe da civilização e das pessoas, mas perto da natureza. Mantém os refúgios limpos e aconchegantes e, nesse caso específico, ainda cuidam da manufatura da cerveja! Isso mesmo, ali estava todo um aparato para produzir cerveja e eu e a Ana tratamos de experimentá-lo. Ela não estava tão gelada como havíamos sonhado, mas deliciosamente saborosa.
Depois do cume, a merecida cerveja no refúgio do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Gato aproveita o aconchego do interior do refúgio do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Então, foi o momento de descansarmos e degustarmos cada minuto. Junto conosco, além da simpática anfitriã, um gato preguiçoso, feliz por estar dentro do refúgio aquecido. Uma enorme janela enfeitada com bandeirolas tibetanas nos possibilitava a vista das montanhas e do vale lá embaixo. Tanto estímulo só nos fez decidir passar da primeira para a segunda garrafa de um litro. Um lugar e um momento como esse merecem, isso não se discute!
Cerveja feita no próprio refúgio do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Com o espírito duplamente elevado, era hora de descermos um pouco mais para caminharmos no Bosque Tallado. Na sombra dos pinheiros, os antigos troncos mortos agora transformados em esculturas mais parecem espíritos da floresta. Com a devida ajuda dos litros recentes de cerveja artesanal, não foi difícil imaginar histórias, criar personagens e dar vazão à imaginação. Mais uma vez, fizemos nossa reverência ao artista que teve essa brilhante ideia de transformar um bosque morto em um verdadeiro jardim de esculturas.
Atravessando o Bosque Tallado na trilha do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Uma das esculturas do Bosque Tallado na trilha do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Depois desse mergulho no mundo do imponderável, era hora de voltarmos à realidade. Felizmente para nós, nesse caso a realidade se materializou na forma da nossa querida Fiona, pronta para nos levar através da estrada empoeirada com todo o conforto e ar condicionado. Realmente, descer aquilo a pé, a esta altura, seria uma quebra de clima danada! Sorte também teve um grande grupo de turistas israelenses para quem demos carona. Meia hora mais tarde e estávamos de volta à nossa pousada e lar em El Bolsón. Amanhã pegamos estrada novamente, sempre rumo ao sul. Mas antes disso, outra noite de sono bem dormida e outro café da manhã que serve como um estímulo para despertarmos. Que assim seja!
Parada para admirar a paisagem na volta do cume do Cerro Piltriquitrón, em El Bolsón, na Argentina
Meio de transporte em Utila, ilha no litoral norte de Honduras
Durante essa viagem, pudemos comprovar na pele um dos mitos preferidos dos viajantes brasileiros: a história de que somos queridos e bem quistos em todos os lugares. Podemos afirmar, em primeira mão, que isso é verdade! Do Alaska à Argentina, passando pelas ilhas do Caribe ou países da América Central, brasileiros fazem o maior sucesso. Não sei se devemos agradecer ao Pelé, ao Romário ou ao Ronaldo, mas o fato é que todos gostam de nós, dos policiais aos frentistas, dos garçons aos hoteleiros. Estando com Ana ali do lado, então, o sucesso ainda fica maior!
Passando pela fronteira entre Guatemala e Honduras, perto de Puerto Cortés
Faltava passar pelo último teste: Honduras! Esse é o país com a pior fama na América Central com relação à violência e chateação de autoridades. Tanto que, na vinda, quando ainda subíamos para o Alaska, resolvemos fazer uma passagem relâmpago, de apenas 3 horas cruzando o país. Não tivemos absolutamente nenhum problema, mas saímos aliviados quando cruzamos a fronteira para El Salvador. Agora, mais de um ano depois, chegou a hora de cruzar o país novamente. Só que, dessa vez, nossa ideia não é passar rapidamente, não. Ao contrário! Chegou a hora de conhecer o país de verdade!
Chegando à Puerto Cortés, no norte de Honduras
Tanto tempo de estrada nos fez aprender que as histórias e famas que chegam até nós, seja pela imprensa, seja por relatos de conhecidos de conhecidos, quase sempre são exageradas. Apenas as notícias ruins viajam, enquanto as boas, ou as “normais”, simplesmente não são notícias e não ficamos sabendo. Enfim, depois da nossa ótima estadia no “perigoso” México, e mesmo em países como Guatemala e El salvador (que também não tem boa fama de segurança), estávamos loucos para verificar que com Honduras seria igual! Basta não ter o azar de estar no lugar errado, na hora errada. Para isso, coisas simples como não dirigir de noite e nem ficar de bobeira perto da fronteira ajudam bastante.
Praia na região de Puerto Cortés, no norte de Honduras
Mas, voltando ao primeiro tópico do post, aquele de que somos sempre bem recebidos por sermos brasileiros, minha curiosidade com Honduras vem do fato de que o Brasil, na gestão do nosso querido ex-presidente, cometeu aqui uma de suas maiores patuscadas de sua política externa (que não foram poucas...), possivelmente queimando o nosso filme. Em 2009, seguindo exatamente o que manda a constituição do país, Manuel Zelaya, o então presidente, foi deposto. Ele insistia em organizar um plebiscito para aprovar a possibilidade de reeleição de presidente, algo que era terminantemente proibido pela constituição. Mais: a carta magna do país dizia que quem quer que defendesse essa ideia perderia seu cargo, seja o gari, seja o próprio presidente. Enfim, com o apoio dos poderes legislativo e judiciário, do Ministério Público e de ampla maioria da população, o presidente foi deposto. Mas aí, liderados pelo finado Chavez e pelo Brasil, os países da América Latina acusaram o “golpe” e quiseram, a todo o custo, impor ao país que aceitasse o tal Zelaya de volta. Honduras resistiu, agarrada a sua constituição e, de novo seguindo sua lei, organizou novas eleições. Mas o Brasil insistiu, contrabandeando o Zelaya para dentro de sua embaixada em Tegucigalpa, de onde ele fez de tudo para atrapalhar o processo que aqui ocorria. A situação chegou ao auge do ridículo quando ele cobriu as janelas da embaixada brasileira com papel alumínio para, segundo ele, se defender dos “raios mentais” (???) que um aparelho trazido por uma equipe do serviço secreto israelense estava disparando sobre ele.
varanda do nosso restaurante, com bela vista para praia na região de Puerto Cortés, no norte de Honduras
Enfim, novas eleições foram organizadas, o candidato do partido de Zelaya foi derrotado fragorosamente, a guerra civil antecipada por Chavez e pelo Brasil não ocorreu (já que ele mal tinha partidários, além de barulhentas minorias organizadas) e o presidente eleito assumiu, sendo reconhecido por boa parte do mundo civilizado. Quem não reconheceu foi a Venezuela e... o Brasil! Sem reconhecer o novo governo, nosso país impôs a exigência de visto de viagem para os hondurenhos. Por reciprocidade, brasileiros passaram a necessitar, também, de visto para entrar em Honduras. E nós, já com o pé na estrada, passamos a ter uma nova preocupação na cabeça. Felizmente, o tempo passou e, na surdina, o novo governo brasileiro voltou atrás e as relações se normalizaram, caindo a exigência de visto. Mas, teria ficado alguma cicatriz?
Estudando o mapa do país em restaurante na região de Puerto Cortés, no norte de Honduras
O sorriso sincero do guarda que nos recebeu nos mostrou que não! E meia hora dirigindo no país nos mostrou que, também aqui, brasileiros são bem recebidos! Quanto à segurança, difícil imaginar estradas mais seguras como nessa época do ano. Em plena Semana Santa, o feriado mais movimentado do país, centenas de bloqueios policiais e militares são colocados em todas as estradas. A Fiona, como sempre, fazendo o maior sucesso entre eles. A maioria das vezes, só precisávamos abaixar os vidros para continuar. Ou, quando havia alguma conversa, a simpatia era total! A imagem daquela tal “má fama” acabou completamente.
Cruzando pequena cidade no norte de Honduras
Falando em Semana Santa, foi ela que acabou definindo nosso roteiro pelo país. Noventa e nove por cento dos turistas estrangeiros que vêm à Honduras querem visitar as Bay Islands e/ou as ruínas de Copán. A grande maioria fica só nisso. Nós também queremos ir a esses dois lugares, mas também acrescentamos no nosso roteiro o lago Yojoa, a capital Tegucigalpa e a cidade histórica de Gracias. Assim, acreditamos, vamos conseguir formar uma ideia bem mais completa do país. Vai faltar uma visita à parte leste de Honduras, uma região de difícil acesso e que iria requerer mais tempo, coisa que anda em falta ultimamente. Então, essa parte vai ficar para a próxima...
Nossos destinos em Honduras: A ilha de Utila (A), as ruínas de Copán (B), a cidade histórica de Gracias (C), o lago Yojoa (D) e a capital Tegucigalpa (E)
Resolvido aonde íamos, faltava decidir a ordem a ser seguida. Geograficamente, faria até mais sentido começarmos pelas ruínas mayas de Copán, mas a questão da Semana santa nos fez decidir pelas Bay Islands, primeiro. Isso porque, no litoral, elas estariam lotadas. Mas se lá chegássemos ainda no início da semana (agora!), ainda teríamos alguma chance de achar hotel. Se ficasse para depois, já nem haveria essa chance. As outras cidades do nosso roteiro, todas no interior, não são tão disputadas assim, na Semana Santa.
Então, rumo à La Ceiba, cidade de onde partem os barcos para Roatán, Utila e Cayo Cocinos, as tais “Bay Islands”. Saímos de Rio Dulce, onde havíamos reencontrado a Fiona ontem de tarde, atravessamos a fronteira sem problemas e seguimos para Puerto Cortés e depois, para a “famosa” San Pedro Sula, considerada a cidade mais violenta do continente! Como nas cidades mexicanas, aqui também quase todas as mortes estão ligadas à guerra de gangues e tráfico de drogas. Raramente a violência atinge os turistas. Mas a fama, tenho de reconhecer, é péssima. De dentro da Fiona, passamos curiosos pela periferia da cidade, um marco na nossa travessia pelo continente. Com a luz do dia, tudo pareceu uma aventura inocente e, com a mesma segurança que entramos, saímos. Inteiros!
Nosso caminho de Rio Dulce, na Guatemala (A) até La Ceiba, em Honduras (D), passando ao lado de Puerto Cortés (C) e dentro de San Pedro Sula (D). De La Ceiba saem os barcos para as “Bay islands”, como a famosa Roatán e Utila, nosso próximo destino
Depois, mais umas poucas horas de estradas, muitos bloqueios policiais e chegamos à La Ceiba. Instalamo-nos em um hotel na praça principal da cidade e fomos buscar informações sobre as Bay Islands. Já faz tempo que tínhamos decidido não seguir para Roatán, a mais turística e cara das ilhas, mas nossa primeira opção as pequenas Cayos Cocinos, aparentemente, estavam lotadas. Só há um hotel por lá, completamente cheio e as casas particulares estavam sendo disputadas a ferro e fogo. Teríamos mais chances mesmo em Utila, com muito mais opções de hospedagem. O negócio era chegar lá e tentar, de porta em porta. Na pior das hipóteses, temos nossa barraca. E na pior da pior das hipóteses, voltamos no barco da tarde. Então, é isso aí, amanhã cedinho, barco para Utila! A Fiona fica nos esperando no porto, do lado de cá. Dando tudo certo, vai ganhar novo descanso...
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