0 Araucárias, Araucanos e Araucania - Blog do Rodrigo - 1000 dias

Araucárias, Araucanos e Araucania - Blog do Rodrigo - 1000 dias

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Araucárias, Araucanos e Araucania

Chile, VictoriaChile

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)


Na viagem de hoje entre Junín de Los Andes, na Argentina, e Victoria, no Chile, as estradas rurais por onde dirigimos passaram em meio a lindos bosques de um tipo de árvore muito conhecido no sul do Brasil: as araucárias. Essa é a árvore-símbolo do Paraná, o estado natal da Ana e o meu por adoção. Não por menos, ficamos encantados em ver tantas delas por lá, um delicioso sentimento de estar chegando em casa. Fora do sul do Brasil e de regiões serranas do sul de Minas, oeste do Rio de Janeiro e leste de São Paulo, a única outra araucária que tínhamos visto havia sido em Quito, capital do Equador, nos jardins de uma universidade. Certamente, um exemplar importado. Então, ver tantas delas hoje em seu ambiente natural foi realmente uma grata surpresa.

Uma legítima araucária na região de Junín de Los Andes, no sul da Argentina

Uma legítima araucária na região de Junín de Los Andes, no sul da Argentina


Um pouco de pesquisa e passamos a entender um pouco mais do assunto. As araucárias daqui e as do Paraná são de espécies distintas, mas do mesmo gênero. O nome desse gênero é exatamente “Araucaria”, e ele se divide em 19 espécies que ainda vivem hoje. Dessas, 13 são nativas da Nova Caledônia, a maior (e mesmo assim, pequena!) das milhares de ilhas do Pacífico Sul. Soma-se a isso as duas espécies sul-americanas e outras quatro que vivem na Austrália e Nova Guiné. O isolamento da Nova Caledônia permitiu o aparecimento e sobrevivência de novas espécies de um gênero que já dominou o mundo, na época dos dinossauros. Com a quebra do super continente de Gondwana, há 100 milhões de anos, as populações remanescentes do gênero acabaram por se dividir entre América do Sul e Oceania e, após tanto tempo, as espécies de diferenciaram.

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)


A espécie que vive no sul do Brasil é a “Araucaria Augustifolia”, também conhecida como Pinheiro-do-Paraná. A espécie que vive principalmente no Chile (de onde também é a árvore-símbolo!) é a “Araucaria Araucana”. O que diferencia as duas espécies é apenas a largura de suas folhas. Nada que um leigo como nós possa diferenciar em uma primeira vista. Para nós, é como se estivéssemos nos planaltos do interior do Paraná. Mas elas são mesmo espécies distintas e foram as árvores chilenas, descobertas na segunda metade do século XVIII por colonizadores europeus, que foram as responsáveis pelo nome do gênero e de todas as espécies a ele pertencentes: “Araucaria”.

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)


Isso porque essas árvores foram primeiro observadas no Vale de Arauco. “Arauco” é uma palavra mapuche (os indígenas dessa parte do Chile) que quer dizer “água dura”, um termo pouco usado em português, mas comum em inglês (“hard water”). É uma água rica em sais de cálcio e magnésio e é comum em rios que atravessam cavernas. Era o caso do rio que formava esse vale onde esse novo tipo de árvores para os europeus foi observado. Foram batizadas de “araucárias”! Mas não foram só elas que herdaram o nome, não.

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)

Atravessando a região da Araucania, famosa por seus pinheiros de araucária e também pelos valentes índios mapuche (região de Victoria, no Chile)


Toda a região no entorno do vale, ao sul e ao norte, passou a ser chamado de Araucania pelos espanhóis. E os habitantes da Araucania, “araucanos”! Eram os indígenas que aí habitavam já há milhares de anos e a principal etnia presente era a dos mapuches. Hoje, no Chile, eles continuam conhecidos com essas duas denominações, araucanos ou mapuches, e são um povo com uma história singular de resistência à colonização e conquista, não apenas pelos espanhóis, mas antes disso, pelos incas também.

Índios mapuches no final do século XIX, época que que a Araucania foi ocupada pelo exército chileno

Índios mapuches no final do século XIX, época que que a Araucania foi ocupada pelo exército chileno


Na verdade, há teorias que vão ainda mais além, propondo que foram confrontos bélicos entre os aguerridos mapuches e a civilização Tiahuanaco (passamos por lá nesses 1000dias! Veja o post aqui), no séc. IX, uma das causas do declínio dessa que foi a mais importante civilização pré-incaica da América do Sul. Esses confrontos são apenas uma teoria, mas o embate com outra civilização, a incaica, esse é conhecido e aceito pelos estudiosos.

O exército Inca, liderado por Apu Camac Inca, enfrenta guerreros mapuches na Batalha de Maule, no final do século XV

O exército Inca, liderado por Apu Camac Inca, enfrenta guerreros mapuches na Batalha de Maule, no final do século XV


Os incas formaram a civilização mais conhecida do continente pré-colombiano. Ela começou a florescer a partir do séc. XIII, mas seu auge foi atingido no final do séc. XV e início do XVI, quando a chegada dos espanhóis ao continente causou sua vertiginosa e trágica derrocada. Pois bem, os incas formavam uma civilização militarista e expansionista, continuamente conquistando territórios vizinhos. O único povo que conseguiu resistir à sua expansão foi exatamente o mapuche, na sua fronteira sul. Na batalha do rio Maule, nas últimas décadas do séc. XV, finalmente o império encontrou um adversário à altura. Quarenta mil guerreiros, vinte mil de cada lado, digladiaram por três dias, sem que houvesse um vencedor. Os generais acharam por bem declarar uma trégua e o rio Maule foi estabelecido como fronteira sul do Império Inca. Nas poucas décadas que restaram ao Império Inca, suas novas conquistas foram sempre direcionadas para o leste e para o norte, onde chegariam até a Colômbia.

Conquistadores espanhóis e guerreros mapuches se enfrentam em batalha na Guerra de Arauco

Conquistadores espanhóis e guerreros mapuches se enfrentam em batalha na Guerra de Arauco


Espiões mapuches viviam entre os incas quando os espanhóis chegaram. Observaram de perto a queda dos antigos inimigos, assim como o uso de técnicas e material bélico avançado por parte dos espanhóis. Ao regressarem para suas terras, contaram sobre a existência de cavalos e do ferro. Quando os conquistadores espanhóis chegaram ao sul, boa parte do efeito surpresa já não mais existia. Os mapuches começaram a se preparar para enfrentar mais um império expansionista.

O grande líder mapuche Caupolicán é executado por impalamento pelos espanhóis

O grande líder mapuche Caupolicán é executado por impalamento pelos espanhóis


Nesses nossos 1000dias pelo continente, lemos e aprendemos muito sobre como se deu a colonização e conquista dos povos que aqui viviam. A espada e as doenças europeias causaram um dos maiores morticínios da história da humanidade. Mais gente morreu por aqui no séc. XVI do que a soma das mortes ocorridas nas guerras mundiais do séc. XX. E foi um conflito onde os europeus eventualmente perdiam batalhas, mas sempre venciam a guerra, seja no meio oeste americano, no Caribe, na América Central, nos Andes ou na costa brasileira. Mesmo civilizações poderosas e que viviam no seu apogeu, como incas e astecas, foram dizimadas em poucas décadas. Sempre procurei uma exceção à regra, um mísero exemplo de que os europeus com suas técnicas e micróbios superiores não tivessem sido invencíveis em território americano, mas as páginas dos livros de história só me mostravam desgraças e mais desgraças, povos conquistados, humilhados, escravizados e aniquilados. Quando já tinha perdido as esperanças, eis que passamos pelo Chile e, mais especificamente, pela Araucania.

Mapa mostrando as cidades espanholas no sul do Chile. Todas as cidades ao sul do rio Bio Bio tiveram  de ser abandonadas após a vitória mapuche ao final do século XVI

Mapa mostrando as cidades espanholas no sul do Chile. Todas as cidades ao sul do rio Bio Bio tiveram de ser abandonadas após a vitória mapuche ao final do século XVI


Na verdade, eu já conhecia por alto a história de resistência dos araucanos desde a minha outra viagem por aqui, há duas décadas. Mas sempre achei que, na verdade, foram os espanhóis que não se interessaram pelo território, a periferia da periferia de um império ultramarino. Teriam mandado para cá soldados de terceira categoria, percebido que não valia o esforço e pronto, simplesmente deixaram para lá. Mas agora, sabendo da história com mais detalhes, vi que estava redondamente enganado. Justiça seja feita, os guerreiros mapuches resistiram sim, e por 300 anos, á subjugação por estrangeiros.

Logo após a queda do império Inca e, os espanhóis mandaram para cá alguns de seus mais experientes guerreiros, liderados por Pedro de Valdivia, um dos principais auxiliares de Pizarro durante a conquista do Perú. Valdivia fundou várias cidades, entre elas, a capital Santiago. Mas foi no sul do rio Maule que ele mais se interessou, pois foi aí que foi encontrado ouro. Mas essa também era a região central do povo mapuche, que prontamente passaram a oferecer uma encarniçada resistência. Como de costume, os espanhóis foram vencendo as batalhas, escravizando indígenas e fundando fortes e cidades. Mas eles não contavam com a fúria e gênio militar de um indígena chamado Lautaro.

Lautaro, o maior general mapuche, que introduziu o uso do cavalo e técnicas militares modernas entre seu povo

Lautaro, o maior general mapuche, que introduziu o uso do cavalo e técnicas militares modernas entre seu povo


Quando jovem, Lautaro viveu como pajem de militares espanhóis. Observador, aprendeu suas técnicas militares e o uso do cavalo nas batalhas. Quando a guerra entre espanhóis e mapuches começou, ele voltou para seu antigo povo e logo estava liderando batalhas montado em seu cavalo. Sob seu comando, os mapuches passaram a usar armas feitas de ferro roubadas de seus inimigos, muito mais eficientes que as antigas, feitas de bronze, pedra ou madeira. Em uma batalha, o grande Pedro de Valdivia foi capturado. Lautaro deu a ele o mesmo fim que espanhóis costumavam dar a líderes indígenas capturados. Foi torturado barbaramente até a morte. Dizem que o índio até o fez engolir areia misturada com pó de ouro, o metal que tanto procurava nas terras mapuches. Depois disso, a revolta mapuche aumentou e a cidade de Concepción, a mais importante no sul do Chile, foi destruída. Lautaro queria chegar até Santiago, mas aliados de outras tribos descontentes com amaneira como ele liderava o abandonaram e ele teve de desistir de conquistar a capital. Por fim, caiu em uma armadilha e foi morto.

Exército chileno e tropas mapuches se enfrentam na época da 'Ocupação e Pacificação da Araucania', no final do século XIX

Exército chileno e tropas mapuches se enfrentam na época da "Ocupação e Pacificação da Araucania", no final do século XIX


A guerra continuou com vitórias de ambos os lados e breves períodos de paz por meio século até que outro famoso conquistador foi enviado para esmagar a rebelião. Martin Garcia de Loyola havia sido o responsável pela captura do último dos incas na selva amazônica peruana, Tupac Amaru, em 1572, posteriormente executado na praça central de Cusco. Loyola se embrenhou com um pequeno exército na região da Araucania, mas foi morto em combate em 1598. Novamente, os índios mapuche souberam aproveitar o momento e, nos próximos cinco anos, destruíram todas as cidades espanholas ao sul do rio Bio Bio. O rei Felipe II, que há tempos se lamentava pelo número de espanhóis mortos nessa guerra, ordenou que fosse feito a paz. A Araucania teve sua independência reconhecida, tendo como fronteira norte o rio Bio Bio. Apenas o forte de Valdivia, ao sul do rio, foi reocupado pelos espanhóis (que temiam que ele fosse ocupado por holandeses ou ingleses) e permaneceu sitiado pelos próximos 200 anos. Os únicos espanhóis que se aventuraram além da fronteira ao longo dos próximos séculos foram missionários jesuítas.

Mulheres e crianças  mapuches após a 'Pacificação da Araucania', no final do século XIX

Mulheres e crianças mapuches após a "Pacificação da Araucania", no final do século XIX


Os mapuches permaneceram independentes ao longo de todo o período colonial e também durante as primeiras décadas da República do Chile como nação soberana. Foi apenas no contexto das campanhas militares conhecidas como “Ocupação e Pacificação da Araucania”, já na segunda metade do séc. XIX, é que eles foram submetidos. Na mesma época, do outro lado dos Andes, eles também lutavam contra o exército argentino nas campanhas militares chamadas de “Ocupação do Deserto” (post aqui). O Chile finalmente unia seu território central com a Ilha de Chiloé e com o sul da patagônia, onde está Punta Arenas, enquanto caía o último território indígena livre das Américas. As campanhas custaram dezenas de milhares de vítimas mapuches e os sobreviventes foram colocados em pequenas reservas, onde tiveram de abandonar seu antigo estilo de vida semi-nomádico. Ao final, mais uma vez, vencia o homem branco, mas que resistência lhe impôs esse valente povo!

Um incêncio na periferia de Victoria, cidade chilena na região de Araucania

Um incêncio na periferia de Victoria, cidade chilena na região de Araucania


Suas antigas terras foram ocupadas por imigrantes vindos da Europa, mas os mapuches sobrevivem como povo. Como tantos outros povos indígenas espalhados pelo mundo, com graves problemas para se adaptar a uma sociedade, cultura e costumes que nunca foram os seus. Esse é um problema enfrentado não apenas por países menos desenvolvidos, como Brasil ou Chile, mas também por nações do chamado 1º mundo, como EUA, Canadá, Austrália ou Nova Zelândia: como conviver com seus próprios indígenas, culturas tão distintas vivendo em um mesmo espaço? Na prática, ainda não houve uma resposta satisfatória para essa questão e, até agora, o lado da corda sempre arrebentou do lado mais fraco. Vivendo nas grandes cidades, essa não é uma questão premente para nós, mas para quem bota o pé na estrada, chega logo à conclusão: não é fácil nascer apache, maia, aymará, guarani, mapuche, maori ou aborígene australiano nos dias de hoje.

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Comentários (1)

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  • 23/02/2017 | 10:11 por Audrey

    Oi, Rodrigo. Sua matéria é fantástica! Não conhecia essa história, mas suspeitava... andei estudando a rota da erva-mate. Preciso retomar. Que bela região!

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